sábado, 16 de maio de 2015

Guarani kaiowá


Nkan tẹrẹ́ Gásà ní ilẹ̀ Bràsíl.
A Faixa de Gaza no Brasil.

Àkójọ́pọ̀ Itumọ̀ (Glossário).

Ìwé gbédègbéyọ̀  (Vocabulário).

Nkan tẹrẹ́: faixa, tira. 

Àwọ̀tẹrẹ́: correia.
Gásà: Gaza.
: no, na, em.
Ilẹ̀: terra, solo, chão.
Bràsíl: Brasil.





Indígenas ameaçam morrer coletivamente caso ordem de despejo seja efetivada
Inserido por: Administrador em 10/10/2012.
Fonte da notícia: Egon Heck/Cimi

Estava trabalhando na memória histórica dos últimos 40 anos, na perspectiva da reedição do documento Y Juca Pirama - "O Índio aquele que deve morrer". Em dezembro de 1973 foi dado esse grito, por bispos e missionários, contra o genocídio indígena em curso pelos governos da ditadura militar.

Enquanto buscava reunir denúncias e violências, mortes e massacres de povos indígenas nestes 40 anos, vejo um email, urgente do Conselho da Aty Guasu Kaiowá Guarani. Ao ler o teor do comunicado fico estarrecido e me junto ao grito dos condenados- “que país é esse?".

Diante do decreto de morte e extermínio surge a obstinada determinação dos povos de viver ou morrer coletivamente, conforme suas crenças, esperanças ou desespero. Esse grito certamente fará parte do manifesto "os povos indígenas, aqueles que devem viver", apesar e contra os decretos de extermínio.

Não podemos calar ou ficar inertes diante desse clamor da comunidade Kaiowá Guarani, de Pyelito Kue/Mbarakay, no município de Iguatemi, Mato Grosso do Sul. Não se trata de um fato isolado, mas de excepcional gravidade, diante de uma decisão de morte coletiva. Continuaremos sendo desafiados por fatos semelhantes, caso não se tome medidas urgentes de solução da questão da demarcação das terras indígenas desse povo.

O grito Kaiowá Guarani

"Sabemos que seremos expulsas daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em ser morto coletivamente aqui. Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai- MS." Esse é o comunicado da comunidade indígena para o Governo e Justiça Federal.  

"Nos matem e enterrem coletivamente", gritam das margens do rio Hovy

"Comemos comida uma vez por dia. Passamos isso dia-a-dia para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos o decreto da nossa morte coletiva e para nos enterrar aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação/extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais.
"Já aguardamos esta decisão. Assim, se é para decretar a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay pedimos que nos enterrem todos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos desse local com vida e nem mortos. Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo de modo acelerado." (Carta da comunidade).

Ao tomar ciência do teor da carta dessa comunidade, Eliseu Lopes, da Aty Guasu/APIB comentou. "É, isso vai se repetir muitas vezes se o governo não demarcar logo as nossas terras. Quando os nossos líderes religiosos decidem retornar aos tekoha (terras tradicionais de nossas comunidades) vão mesmo e ninguém segura”. Ele lamenta profundamente se chegar a esse ponto de desespero que poderá levar a muitas mortes.


Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil

Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) comunidades Guarani-Kaiowá originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, viemos através desta carta apresentar a nossa situação histórica e decisão definitiva diante de da ordem de despacho expressado pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012. Recebemos a informação de que nossa comunidade logo será atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal, de Navirai-MS.

Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver à margem do rio Hovy e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay. Entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio e extermínio histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós.  Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas.

Moramos na margem do rio Hovy há mais de um ano e estamos sem nenhuma assistência, isolados, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo isso para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs, avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados.
Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.

Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para  jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos.
Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.  

Atenciosamente, Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay

Carta do Povo Kaiowá e Guarani à Presidenta Dilma Rousseff

Publicado em 3/2/2011 por: Conselho da Aty Guasu Kaiowá Guarani

“Presidente Dilma, a questão das nossas terras já era para ter sido resolvido há décadas. Mas todos os governos lavaram as mãos e foram deixando a situação se agravar”. O texto integra a carta do Povo Kaiowá e Guarani enviada à Presidenta Dilma Rousseff.
Eis a carta.
Que bom que a senhora assumiu a presidência do Brasil. É a primeira mãe que assume essa responsabilidade e poder. Mas nós Guarani Kaiowá queremos lembrar que para nós a primeira mãe é a mãe terra, da qual fazemos parte e que nos sustentou há milhares de anos. Presidenta Dilma, roubaram nossa mãe. A maltrataram, sangraram suas veias, rasgaram sua pele, quebraram seus ossos... rios, peixes, arvores, animais e aves... Tudo foi sacrificado em nome do que chamam de progresso. Para nós isso é destruição, é matança, é crueldade. Sem nossa mãe terra sagrada, nós também estamos morrendo aos poucos. Por isso estamos fazendo esse apelo no começo de seu governo. Devolvam nossas condições de vida que são nossos tekohá, nossos terras tradicionais. Não estamos pedindo nada demais, apenas os nossos direitos que estão nas leis do Brasil e internacionais.
No final do ano passado nossa organização Aty Guasu recebeu um prêmio. Um prêmio de reconhecimento de nossa luta. Agora, estamos repassando esse premio para as comunidades do nosso povo. Esperamos que não seja um premio de consolação, com o sabor amargo de uma cesta básica, sem a qual hoje não conseguimos sobreviver. O Premio de Direitos Humanos para nós significa uma força para continuarmos nossa luta, especialmente na reconquista de nossas terras. Vamos carregar a estatueta para todas as comunidades, para os acampamentos, para os confinamentos, para os refúgios, para as retomadas... Vamos fazer dela o símbolo de nossa luta e de nossos direitos.
Presidente Dilma, a questão das nossas terras já era para ter sido resolvido há décadas. Mas todos os governos lavaram as mãos e foram deixando a situação se agravar. Por último o ex-presidente Lula, prometeu, se comprometeu, mas não resolveu. Reconheceu que ficou com essa dívida para com nosso povo Guarani Kaiowá e passou a solução para suas mãos. E nós não podemos mais esperar. Não nos deixe sofrer e ficar chorando nossos mortos quase todos os dias. Não deixe que nossos filhos continuem enchendo as cadeias ou se suicidem por falta de esperança de futuro. Precisamos nossas terras para começar a resolver a situação que é tão grave que a procuradora Deborah Duprat, considerou que Dourados talvez seja a situação mais grave de uma comunidade indígena no mundo.
Sem as nossas terras sagradas estamos condenados. Sem nossos tekohá, a violência vai aumentar, vamos ficar ainda mais dependentes e fracos. Será que a senhora como mãe e presidente quer que nosso povo vai morrendo à míngua?. Acreditamos que não. Por isso, lhe dirigimos esse apelo exigindo nosso direito.

A faixa de gaza brasileira

02/08/2014 18h41 - Atualizado em 02/08/2014 19h51

Índios vivem em 'Faixa de Gaza brasileira', diz antropólogo na Flip
Eduardo Viveiros de Castro debateu questão indígena com Beto Ricardo.
Mesa sobre o tema teve críticas a Belo Monte: 'Picaretagem econômica'.
Cauê Muraro
Do G1, em Paraty



O Mato Grosso deveria mudar de nome para "mato ralo, mato morto ou ex-mato" e os índios que lá se encontram "vivem numa espécie de Faixa de Gaza brasileira", afirmou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro na tarde deste sábado (2) na 12ª Festa Literária de Paraty (Flip). Com suas críticas, frases de impacto ("no Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é") e assumidamente pessimista, ele foi bastante aplaudido no debate "Tristes trópicos", do qual participou o também antropólogo Beto Ricardo. No evento, este foi o segundo e último encontro dedicado à questão indígena. As manifestações na tenda dos autores foram positivas o tempo inteiro.

Viveiros de Castro ganhou aplausos já em sua primeira exposição. "Os índios estão sofrendo uma espécie de ofensiva final. É triste ver que estamos assistindo hoje literalmente a um processo de devagastação do país, que está sendo arrasado", disse. "O exemplo mais dramático talvez seja o estado do Mato Grosso do Sul, que foi literalmente transformado num campo sem nada, a custa de que se possa plantar ali, soja, cana, e botar gado para exportação, para alimentar os países capitalistas centrais."

Neste momento, veio a brincadeira de que o estado deveria ser rebatizado e a menção de que existem "semelhanças perturbadoras com o povo palestino no Oriente Médio". Falou, então, que o território indígena foi sendo reduzindo progressivamente e que houve "todo tipo de violência". Também descreveu que ocorreram bombardeios feitos pelos militares no passado, embora "não tão sofisiticados" quanto os de Israel.
"Mas o estado de Israel ao menos tem o direito, uma pretensão histórica e uma relação com aquele lugar. Acho que é um genocídio projetado e realizado [em Israel], e tem essa relação história. Mas os brancos que estão no Mato Grosso matando os guaranis não têm nenhuma relação histórica. Não há, literalmente, desculpa."

Na opinião do antropólogo, a população indígena no país corre "maior perigo do que nunca de desaparecer, de que passe um trator por cima, de que passe uma hidrelétrica por cima". Por outro lado, os índios já passaram pelo que ele chama de fim do mundo.
"Para discutir o fim do mundo, temos de consultar os grandes especialistas no assunto, que são os índios. O mundo deles acabou há cinco séculos, e eles aprenderam a viver num mundo diferente. Agora, estão vendo o céu cair em cima da cabeça deles. Mas, desta vez, vai cair em cima de nós todos."
De acordo com ele, quando "o barco afundar, aí só vão nadar os índios. "É bom que a gente se prepare para ir virando índio, antes que seja tarde."
Belo Monte e 'vergonha do Brasil'
Beto Ricardo afirmou que os progessos conseguidos pelos índios nas últimas décadas, em especial depois da constituição de 1988, parecem ameaçados. "O negócio agroexportador está querendo mais terras, e os índios estão 'atrapalhando'", comentou. De acordo com ele, atualmente há lobby no congresso em favor "iniciativas legislativas para fazer retroceder esse direito". "Estão transformando os direito indígenas em barganha com oligarquias regionais."
O convidado falou ainda sobre a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. "É uma espécie de lobo em pele de cordeiro, uma espécie de cavalo de Troia, digamos assim, e os índios estão percebendo isso."

Ricardo ainda desafiou os presentes a tentarem lembrar nomes de umas poucas etnias indígenas - para ele, está aí um indício do interesse raro ou inexistente pelo assunto. Sugeriu, de brincadeira, que as pessoas estudem e decorem os nomes desses etnias da mesma forma que fazem com as capitais do Brasil.
Viveiros de Castro avançou no tom crítico à usina hidrelétrica. "Nós sabemos que Belo Monte é uma picaretagem econômica", começou. "Não chega a ser exatamente um segredo que Belo Monte não foi feita para produzir energia. Entenda-se como quiser. Belo monte foi feita para os empreiteiros fizessem Belo Monte. Para que dívida de campanhas fossem pagas dando serviço, oportunidade de lucro para grandes empreiteiras. Tudo isso com nosso dinheiro."

Em suas considerações finais, ganhou novos aplausos ao se dizer que foi estudar os índios porque queria "fugir do Brasil" e que sente vergonha do país. "O que torna realmente uma pessoa brasileira ou francesa ou americana são menos os motivos de orgulho. O que nos torna realmente brasileiros são as coisas que nos envergonham", falou, destacando razões como a exploração dos negros africanos ("o Brasil foi último país do mundo a abolir a escravidão, com exceção da Mauritânia"), o descaso com educação e a má distribuição de renda.

"Se eu fosse francês, teria vergonha do que a França fez na Argélia, na Indochina, na África. Ou seja, ser brasileiro não é especialmente vergonhoso. Ser de qualquer país é vergonhoso, porque todo país é construído em cima da destruição de povos", explicou.


"No meu caso, me sinto brasileiro quando vejo o modo como é tratado um negro no Brasil. Aí, eu me sinto brasileiro, porque isso realmente acontece no meu país - e eu não sou capaz de fazer nada."





Relatório do conselho Aty Guasu explica a situação dos Guarani Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay

Este relatório é do conselho da Aty Guasu Guarani e Kaiowá, explicitando a história e situação atual de vida dos integrantes das comunidades Guarani-Kaiowá do território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay, localizada na margem de Rio Hovy, 50 metros do rio Hovy, no município de Iguatemi-MS. O acampamento da comunidade guarani e kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay começou no dia 08 de agosto de 2011.


É importante ressaltar que os membros (crianças, mulheres e idosos) dessa comunidade proveniente de uma reocupação, no dia 23 de agosto de 2011, às 20h00, foram atacados de modo violentos e cruéis pelos pistoleiros das fazendas. A mando dos fazendeiros, os homens armados passaram permanentemente a ameaçar e cercar a área minúscula reocupada pela comunidade Guarani-Kaiowá na margem do rio que este fato perdura até hoje.

Em um ano, os pistoleiros que cercam o acampamento das famílias guarani-kaiowá, já cortaram/derrubaram 10 vezes a ponte móvel feito de arame/cipó que é utilizada pelas comunidades para atravessar um rio com a largura de 30 metros largura e mais de 3 metros de fundura. Apesar desse isolamento pistoleiros armados ameaçam constantemente os indígenas, porém 170 comunidades indígenas reocupante do território antigo Pyelito kue continuam resistindo e sobrevivendo na margem do rio Hovy na pequena área reocupada até os dias de hoje, estão aguardando a demarcação definitiva do território antigo Pyelito Kue/Mbarakay.

No dia 8 dezembro de 2009, este grupo já foi espancado, ameaçado com armas de fogo, vendado e jogado à beira da estrada em uma desocupação extra-judicial, promovida por um grupo de pistoleiros a mando de fazendeiros da região de Iguatemi-MS. Antes, em julho de 2003, um grupo indígena já havia tentado retornar, sendo expulso por pistoleiros das fazendas da região, que invadiram o acampamento dos indígenas, torturaram e fraturaram as pernas e os braços das mulheres, crianças e idosos. Em geral os Guarani e Kaiowa são hoje cerca de 50 mil pessoas, ocupando apenas 42 mil hectares. A falta de terras regularizadas tem ocasionado uma série de problemas sociais entre eles, ocasionando uma crise humanitária, com altos índices de mortalidade infantil, violência e suicídios entre jovens.

No último mês a Justiça Federal de Navirai-MS, deferiu liminar de despejo da comunidade Guarani e Kaiowá da margem do rio Hovy solicitado pelo advogado dos fazendeiros e, no despacho cita “reintegração de posse”, mas observamos que o grupo indígena está assentado na margem do rio Hovy, ou seja, não estão no interior da fazenda como alega o advogado dos fazendeiros. De fato, não procede à argumentação dos fazendeiros e por sua vez do juiz federal de Navirai sem verificar o fato relatado, deferir a reintegração de posse. Não é possível despejar indígenas da margem de um rio. Por isso pedimos para Justiça rever a decisão de juiz de Navirai-MS.

No sentido amplo, nos conselhos da Aty Guasu recebemos a carta da comunidade de Pyelito Kue/Mbarakay em que consta a decisão da comunidade que passamos divulgar a todas as autoridades federais e sociedade brasileira.


Tekoha Pyelito kue/Mbarakay, 08 de outubro de 2012
Atenciosamente,
Conselho/Comissão de Aty Guasu Guarani e Kaiowá do MS.



Egon Heck
Povo Guarani Grande Povo
Cimi 40 anos, 10 de outubro de 2012

Cosmologia (ọ̀rọ̀-ìgbéayé)

Mitos e cosmologia

Edição a partir dos textos Mitos e cosmologias indígenas no Brasil: breve introdução (1992) e Mito, razão, história e sociedade (1995), de Aracy Lopes da Silva



O que são mitos?

Uma das maneiras pelas quais os especialistas costumam conceber os mitos inclui sua definição como narrativas orais, que contêm verdades consideradas fundamentais para um povo (ou grupo social) e que formam um conjunto de histórias dedicado a contar peripécias de heróis que viveram no início dos tempos (no tempo mítico ou das origens), quando tudo foi criado e o mundo, ordenado. O que se enfatiza, dessa perspectiva, é o caráter de narrativas que os mitos têm.


O mito (assim, no singular) pode também ser definido com um nível específico de linguagem, uma maneira especial de pensar e de expressar categorias, conceitos, imagens, noções articuladas em histórias cujos episódios se pode facilmente visualizar. O mito, então, é percebido como uma maneira de exercitar o pensamento e expressar idéias. Quais seriam, porém, suas características distintivas?

Estas duas definições coincidem no que é essencial: primeiro, ambas indicam que os mitos dizem algo e algo importante, a ser levado a sério; segundo, ambas apontam também para o fato de uma das especificidades do mito estar na maneira de formular, expressar e ordenar as idéias e imagens pela qual se constitui como discurso, e pela história que narra; por fim, ambas sugerem uma relação particular entre o mito (ou os mitos), o modo de viver e pensar e a história daqueles povos responsáveis por sua existência.



De que falam os mitos?

Indiferenciação entre humanos e animais, que se relacionam como iguais; céu e terra próximos, que quase se tocam; viagens cósmicas, homens que voam, gêmeos primevos, incestos criadores; origens subterrâneas; dilúvios; humanidades sub-aquáticas; caos, conquistas, transformações... É o mundo tomando forma, definindo lugares e características de personagens hoje conhecidos.


São os temas míticos, que narram aventuras e seres primordiais, em uma linguagem que se constrói com imagens concretas, captáveis pelos sentidos; situadas em um tempo das origens, mas referidas ao presente, encerrando perspectivas de futuro e carregando experiências do passado. Assim, complexos, são os mitos.

São, também, extremamente variados, já que são criações originais de cada grupo com identidade cultural própria, referidos às suas condições de existência e à cosmovisão aí elaborada. Mas é igualmente inegável a sua condição de variações sobre temas comuns, compartilhados não apenas localmente mas, em alguns casos, em escala universal. Particulares e locais, universais e essencialmente humanos. Talvez resida aí uma parte do fascínio e do mistério dos mitos.

Em universos sócio-culturais específicos, como aqueles constituídos por cada sociedade indígena no Brasil, os mitos se articulam à vida social, aos rituais, à história, à filosofia própria do grupo, com categorias de pensamento elaboradas localmente que resultam em maneiras peculiares de conceber a pessoa humana, o tempo, o espaço, o cosmos. Nesse plano, definem-se os atributos da identidade pessoal e do grupo, que é distintiva e exclusiva, e construída no contraste com aquilo que é definido como o “outro”: a natureza, os mortos, os inimigos, os espíritos.



O que são cosmologias?

São teorias do mundo. Da ordem do mundo, do movimento no mundo, no espaço e no tempo, no qual a humanidade é apenas um dos muitos personagens em cena. Cosmologias definem o lugar que os humanos ocupam no cenário total e expressam concepções que revelam a interdependência permanente e a reciprocidade constante nas trocas de energias e forças vitais, de conhecimentos, habilidades e capacidades que dão aos personagens a fonte de sua renovação, perpetuação e criatividade. Na vida cotidiana, essas concepções orientam, dão sentido, permitem interpretar acontecimentos e ponderar decisões. São expressas através da linguagem simbólica da dramaturgia dos rituais. Música, ornamentos corporais, entre outros recursos, permitem o contato com outras dimensões cósmicas, com momentos outros do mundo e do processo da vida (e da morte).

É central a definição do que seja a humanidade e de seu lugar na ordem cósmica em contraposição a outros domínios - habitados e controlados por seres de outra natureza - vistos, às vezes, como momentos diversos de um processo contínuo de produção da vida e do mundo. No cosmos concebido, há ordem, há classificação, há oposição lógica, há hierarquia, categorias inclusivas e exclusivas. Mas há também movimento e um jogo constante com o tempo, seja para suprimi-lo, permitindo aos viventes humanos um reencontro possível com o passado, os ancestrais, as origens, seja para torná-lo eixo da própria existência, destinada a completar-se e a constituir-se plenamente após a morte, na superação eterna das limitações da condição humana.



Mito e sociedade

Os mitos são um lugar para a reflexão, falam de complexos problemas filosóficos com que os grupos humanos devem se defrontar. Têm muitas camadas de significação e, são repetidamente apresentados ao longo da vida dos indivíduos que, à medida que amadurecem social e intelectualmente, vão descobrindo novos e insuspeitos significados nas mesmas histórias de sempre, por debaixo das camadas já conhecidas e já compreendidas.


É assim que as sociedades indígenas conseguem apresentar conhecimentos, reflexões e verdades essenciais em uma linguagem que é acessível já às crianças que entram em contato com questões cuja complexidade irão aos poucos descobrindo e compreendendo.

É por todas estas razões que os mitos são, em sua plenitude, de difícil compreensão. As verdades que dizem e as concepções que contêm, embora refiram-se a questões pertinentes a toda a humanidade, são articuladas e expressas com valores e significados próprios a cada sociedade e a cada cultura. Para chegar até elas é, portanto, essencial um conhecimento bastante denso dos contextos sócio-culturais que servem de referências à reflexão contida em cada mito.

Os mitos falam sobre a vida social e o modo como ela é organizada e concebida em uma determinada sociedade. Não a espelham, simplesmente: problematizam-na, tornam-na objeto de questionamento e incitam a reflexão sobre as razões da ordem social. Podem – e, de fato, muitas vezes o fazem – terminar por reafirmá-la (Lévi-Strauss, 1976), mas isto não se dá de forma mecânica.



Mito e história

O mito, como a cultura, é vivo. Já que simultaneamente produto e instrumento de conhecimento e reflexão sobre o mundo, a sociedade e a história, incorpora como temas, os processos perpetuamente em fluxo nos quais se desenrola a vida social. São produtos elaborados coletivamente, nos quais novas situações são articuladas e tornadas significativas (como exemplos desses processos, ver Gallois, 1993 e Lopes da Silva, 1984).


Os mitos são parte da tradição de um povo, no entanto a tradição é continuamente recriada: caso contrário, perderia o sentido, seria apenas reminiscência, e não memória de experiências passadas que são tornadas referências vivas para o presente e para o futuro. Os mitos, assim, mantêm com a história uma relação de intercâmbio, registrando fatos, interpretações, reduzindo, por vezes, a novidade ao já conhecido ou, inversamente, deixando-se levar pelo evento, transformando-se com ele (Sahlins, 1989; Fausto, 1992).

Há até pouco tempo, as sociedades indígenas eram entendidas, pelos estudiosos, como sociedades “sem história”. Imaginava-se essas sociedades voltadas para o passado mítico, empregando sua criatividade no sentido de manter-se igual a si mesma, negando o fluxo da história, neutralizando as transformações e reconhecendo como processos, apenas os de recomposição do modelo tradicionalmente seguido. Foram assim concebidas num primeiro momento dos estudos antropológicos e, em consonância com isto, foram definidas como sociedades “tradicionais, sagradas e fechadas” sobre si mesmas, imunes à mudança. Desta perspectiva, os povos indígenas só “entravam na História” a partir de seu contato com os “brancos”, como partícipes da história ocidental.

Estas idéias foram forçosamente revistas. Percebeu-se que aí havia uma visão etnocêntrica que impedia a compreensão das sociedades nativas em seus próprios termos. Sabe-se hoje (e isto é tema atual de inúmeras pesquisas) que as culturas humanas desenvolvem variadas lógicas históricas, maneiras de pensar, relacionar-se e viver os processos históricos.



Panorama da Diversidade

Veremos referências mais concretas aos modos indígenas específicos de conceber o cosmos e de se situar nele. Segue a ilustração, feita aqui apenas como ponto de partida.


Temas comuns

A recorrência de assuntos, noções, figuras e imagens nas mitologias indígenas sul-americanas foram objeto da obra consagrada de Claude Lévi-Strauss, que revelou, por debaixo e através das variações locais, problemáticas comuns. O simbolismo prolífico e as imagens ricas e diversificadas dão concretude às noções abstratas, filosóficas, que expressam a visão indígena do mundo. Simetrias, inversões, valorações antagônicas que se alternam, homologias, alteração de ênfases... são mecanismos da lógica do mito e, nesta medida, da lógica do pensamento humano, ambos postos em movimento para propiciar a reflexão sobre oposições, tais como a de natureza/cultura; vida/morte; homem/mulher; particular/geral; identidade/alteridade. As mitologias e as cosmologias indígenas tratam, portanto, de temas com que se preocupam todos os homens, com menor ou maior grau de elaboração, expressão ou consciência. São temas, como se vê, que remetem à essência do que significa ser humano e estar no mundo. Por isto mesmo, apesar do estranhamento inicial trazido por signos desconhecidos - que carregam concepções inesperadas, articuladas a teorias cuja tradução escapa à primeira aproximação - a comunicação é possível e se dá não só na pesquisa e na divulgação, como também fascina e desafia.


Povos Jê
desenho_de_tempty_suia
desenho_de_tempty_suia

Entre povos da família lingüística Jê, o cosmos é concebido como habitado por diferentes humanidades - a subterrânea, a terrestre, a subaquática e a celeste – que existem desde sempre. O tempo das origens é o da indiferenciação e da desordem, da convivência e da interpenetração daqueles domínios. Astros, como o Sol e a Lua, são gêmeos primordiais que vivem aventuras na terra e aqui deixam o seu legado, antes de partirem para sua morada eterna. Nos mitos Jê, há referências explícitas às atividades de subsistência e às práticas sociais de modo geral. Instituições sociais – a nomeação dos indivíduos, a guerra, o xamanismo... – têm no mito descritas as suas origens e exposta a sua essência.



Povos do Alto Rio Negro
cobra-grande
cobra-grande


Por contraste, caberia mencionar, a região do alto rio Negro, o noroeste amazônico, morada de povos de língua Tukano. No início dos tempos, antepassados míticos criaram o mundo que, antes, não existia. Das entranhas de uma cobra grande ancestral, que fazia o percurso do rio, saíram, em pontos precisos daquele percurso, os primeiros antepassados de cada um dos vários povos da região, determinando, assim, seus respectivos territórios, suas atribuições específicas e um padrão hierarquizado de relacionamento entre eles.

Em muitas cosmologias, as relações entre humanos e os demais seres são pensadas através da idéia da predação, numa metáfora que simbólica e logicamente aproxima caça, guerra, sexo e comensalidade. Ainda no alto rio Negro, o xamã parece estar encarregado de garantir que fluxos e volumes de energia vital compartilhada por humanos e animais mantenham-se em níveis adequados. Exageros na matança de animais deflagrariam, como contrapartida, epidemias e malefícios entre os homens, provocados por espíritos protetores dos animais. Um equilíbrio vital nas lembranças e o convívio com a idéia da morte são experiências diárias na apreciação e na condução da vida.

Povos Tupi-Guarani

Desde há mais de 500 anos, os não-índios produzem análises na tentativa de compreender as práticas sociais e as concepções cosmológicas dos Tupi-Guarani. Do espanto inicial à sistematização das informações dos cronistas, realizada entre as décadas de 1940 e 1950, passando pela catequese jesuítica e pelos episódios dramáticos da Conquista, é constante a referência central a temas como a guerra, o canibalismo, a vingança da morte através de novas guerras e novas mortes e novas vinganças.

Uma compreensão destes povos, suas sociedades e suas cosmologias, adequada aos tempos recentes de amadurecimento teórico e metodológico da antropologia, revela – apesar da grande diversidade existente entre elas, tanto no plano sociológico, quanto nas variações entre suas cosmovisões respectivas – a centralidade da noção de temporalidade como eixo sobre o qual constroem-se noções fundamentais como a de pessoa e de cosmos. Temporalidade está aliada às relações de alteridade que os Tupi-Guarani buscam sistematicamente situar fora do domínio social propriamente dito, encarnadas nos inimigos, nos espíritos, nos animais, nos mortos e nas divindades.



Bibliografia citada

FAUSTO, Carlos. “Fragmentos de História e Cultura Tupinambá: da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico”. In: CARNEIRO DA CUNHA, M. (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo, Cia das Letras/Edusp/SMC, 1992

GALLOIS, Dominique. Mairi Revisitada. São Paulo, NHII-USP/Fapesp, 1993.
LALLEMAND, Suzanne. “Cosmogonia”. In: AUGÉ, M. (org.) A construção do mundo. Edições 70, Lisboa, 1978.
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Xamanismo (Ẹ̀sìn ìbílẹ̀)

Xamanismo

 

Foto: diversos autores, veja aqui      

por Pedro de Niemeyer Cesarino (2009)

"Xamanismo" é algo que não se reduz a uma só definição ou explicação. Religião, crença, ritual, sistema de pensamento, ontologia, configuração de mundo: tais são algumas das categorias polêmicas que surgem à mente quando se trata de fazer uma breve apresentação sobre o assunto. O termo, genérico e mal compreendido, é empregado para designar um sistema ritual dos mais antigos da humanidade, partilhado por povos que se estendem da Ásia até o extremo sul da América. "Xamã" parece derivar de çaman, palavra empregada pelos Evenks siberianos para designar os seus especialistas rituais. É análoga a "pajé", derivada por sua vez de termos das línguas tupi-guarani também utilizados na referência a tais especialistas. Cada uma das línguas ameríndias possui seus termos equivalentes, em qualquer parte dos três continentes.

O xamanismo representa, assim, uma base comum aos povos autóctones da Ásia e das Américas, já que este continente foi ocupado por sucessivas migrações provenientes do primeiro. Mais antigo, o xamanismo foi sobreposto por grandes religiões tais como o budismo, o confucionismo, o taoísmo, o cristianismo e o islamismo. Algo análogo ao que ocorre no Brasil, quando os xamanismos indígenas passam a se defrontar com o credo católico ou protestante. Esta é, aliás, uma boa maneira para se compreender um dos traços essenciais do fenômeno: o xamanismo nem sempre desaparece no enfrentamento com grandes sistemas religiosos. Talvez porque não possa ser compreendido exatamente como uma "religião", ele acaba por se infiltrar, por subverter ou por sobreviver às tentativas de conversão que, no Brasil por exemplo, são realizadas desde a invasão européia.

Tratamos, afinal, de uma certa organização ou configuração de mundo que não possui um dogma estabelecido, um conjunto de doutrinas ou alguma escritura sagrada, uma liturgia fixa, um corpo de sacerdotes organizado em torno do Estado e, mais importante, uma fé em alguma divindade única. Difícil, portanto, definir o xamanismo como uma crença. Tais ausências são especialmente válidas para os povos indígenas das terras baixas da América do Sul, ou seja, para aqueles que não viveram sob o domínio de organizações estatais, tais como o império Inca. A mediação exercida pelos xamãs amazônicos tem mais a ver com uma certa diplomacia, uma forma de traduzir e de conectar os humanos viventes à multidão de espíritos, de almas de mortos e de animais que constituem as cosmologias indígenas. Nestas, não há exatamente deuses que encarnam ou que detém poderes sobre fenômenos naturais, para os quais são erguidos templos e oferecidos sacrifícios (como no caso dos Aztecas ou dos Mayas). As entidades com as quais os xamãs indígenas se relacionam são de outra ordem. Ao invés de despachar uma vítima sacrificial como intermediária entre deuses e humanos, os xamãs vão em pessoa encontrar os espíritos e demais sujeitos que habitam os seus mundos.

Xamanismo sem xamãs
O xamanismo, aliás, não se concentra tanto em cargos definidos, tal como no caso dos sacerdotes, mas sim em processos de transformação e de transporte para as moradas destas entidades outras. Não por acaso, algumas sociedades indígenas, tais como os Parakanã do Xingu, possuem um xamanismo sem xamãs. Na ausência de um especialista ritual determinado, são as pessoas comuns que, em sonho, encontram espíritos e trazem deles os cantos que serão executados mais tarde na aldeia, quando o sonhador já estiver desperto. É como se todos fossem de alguma forma um pouco pajés e pudessem, ao seu modo, estabelecer contato com a multidão de entidades invisíveis. O surgimento súbito de um xamã é também algo possível: em um momento de crise, em geral caracterizado por uma grave doença, um sujeito pode começar a estabelecer contato com "pessoas outras" que renovam seu corpo, trocam seu sangue, introduzem elementos mágicos em sua carne, ensinam-lhe cantos. Diz-se então que a pessoa "empajezou", transformou-se em uma pessoa outra. Agora será dotada de "um outro olho", capaz de enxergar o que é invisível às pessoas comuns (ao menos em seu estado desperto).

Todos esses fenômenos estão relacionados a uma composição básica da pessoa nos mundos indígenas. Há sempre uma divisão entre o corpo e ao menos duas almas ou duplos – uma que se transformará em fantasma ou espectro após a morte, outra que terá um destino especial, celeste em muitos casos. O corpo, porém, não é um feixe fisiológico tal como o concebido pelos médicos ocidentais, mas uma espécie de invólucro, de envelope, carcaça, pele ou roupa que abriga as almas de aparência humana. Em estados liminares tais como sonhos, doenças, ou ingestão de substâncias psicoativas, a alma sai de seu corpo/roupa e perambula por aí. Vai encontrar outras aldeias, espíritos, homens e mulheres que os olhos "do corpo" não conseguem enxergar. É nesse ponto que mito e xamanismo se relacionam.

O que é um mito?
Em uma entrevista, fizeram a Claude Lévi-Strauss a seguinte pergunta: "O que é um mito?". E o antropólogo assim respondeu: "Se você perguntasse a um índio americano, é muito provável que ele respondesse: é uma história do tempo em que os homens e os animais ainda não se distinguiam. Esta definição me parece muito profunda"1. As narrativas míticas ameríndias de fato giram em torno deste tema: houve um tempo em que a imagem geral do cosmos era uma imagem "humana", todas as espécies partilhavam uma forma humana genérica, até que algum evento de ruptura interrompeu tal estado primeiro, instaurando os limites, as diferenças e o problema da invisibilidade. Daí em diante, os animais, frequentemente por conta de algum erro que cometeram nos tempos míticos, ganham corpos/roupas de onça, anta, porco do mato ou de outros bichos, mas continuam com a mesma alma humana que sempre possuíram. Os humanos, por sua vez, são os únicos que mantém o seu corpo à semelhança desta alma genérica, ainda partilhada por todas as entidades que compõem isso que chamamos de "natureza". Veja o que diz o xamã yanomami Davi Kopenawa:

"No começo do tempo, quando nossos antepassados ainda não tinham se transformado em outros, éramos todos humanos: as araras, os tapires, os queixadas, eram todos humanos. Depois, esses antepassados animais se transformaram em caça. Para eles, porém, somos sempre os mesmos, somos animais também; somos a caça que mora em casas, ao passo que eles são os habitantes da floresta. Mas nós, os que ficamos, nós os comemos, e eles nos acham aterrorizantes, pois temos fome de sua carne"2.
 Ora, mas os tempos míticos não se esgotaram. Para os povos indígenas, eles continuam suspensos ou paralelos à atualidade. Muitos animais seguem pensando para si mesmos que são gente, enquanto nós os enxergamos em seus corpos/roupas de bicho. Quando o duplo ou alma de uma pessoa sai para fora de seu corpo, ele pode ver aquilo que antes permanecia velado: as aldeias sub-aquáticas e suas festas; o duplo ou alma humanóide de uma arara; uma árvore que, para os olhos alterados, se mostra como uma sociedade, pois os periquitos podem muito bem se conceber como pessoas e viver, portanto, em malocas.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro formulou bem o problema através de um contraste interessante: os mundos indígenas são multinaturalistas, concebem uma multiplicidade de naturezas (os diferentes corpos dos bichos) e uma unidade da cultura (a cultura humana partilhada por todas as espécies). O mundo ocidental, por sua vez, é multiculturalista, imagina uma multiplicidade de culturas (chinesa, francesa etc.) e uma só natureza. Nesta concepção, animais são radicalmente distintos dos humanos por não possuírem, precisamente, uma alma pensante análoga à nossa e, portanto, uma cultura. Aproximam-se de nós por serem mamíferos, por partilharem de uma natureza comum, enfim. O pensamento indígena pressupõe o contrário: os bichos são próximos de nós porque para si mesmos se concebem como gente e possuem, portanto, uma cultura (malocas, redes, festas, pinturas corporais, cocares e adornos) semelhante a esta visível nas aldeias. Mas os corpos são outros.

E o xamanismo?
Ora, isso tudo é o xamanismo, essa especial constituição de realidade e de ética cosmológica. Os xamãs, diplomatas ou tradutores, como diz a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, são os responsáveis pelo arriscado trânsito de almas para além dos corpos. Um homem comum pode, na doença por exemplo, ver a gente-sucuri em suas casas (que sadio ele veria como o rio) e ser seduzido por uma bela mulher-sucuri. Ele passaria então a viver ali com a sua família sub-aquática sem se dar conta de que, na outra aldeia, seu corpo definha e preocupa a sua família "humana". Ele está doente porque incompleto ou vazio, pois a alma ou duplo está alhures com a nova mulher-sucuri. Um xamã deverá então trazê-lo de volta ao seu corpo e, assim, resolver este problema social espalhado pelo cosmos. Situações como esta acontecem com freqüência nas aldeias indígenas. O xamã ou pajé está, a rigor, acostumado com tais trânsitos. Ele já é outra pessoa, pode ter uma família com os humanos-outros, vive sempre entre duas referências, transita entre as gentes dos animais, os espíritos, as almas dos mortos. Costuma trazer de lá notícias através de seus cantos e, assim, integra o enorme contingente de entidades invisíveis ao cotidiano das aldeias. Não por acaso, alguns índios da Amazônia costumam dizer que o pajé "é como um rádio".

Um dos grandes erros está em imaginar que o xamanismo é uma espécie de mística new age, ou então uma tradição fadada ao desaparecimento pelas transformações sociais e pela problemática idéia de aculturação. O xamanismo – esta rede ou malha de conexões entre princípios anímicos que vivem por detrás dos corpos visíveis – é algo por princípio criativo e voltado para a alteridade. Exímios negociadores das multiplicidades sociais presentes desde os tempos míticos, os pajés sabem traduzir em seus próprios termos as novidades de nosso mundo. Os Maxakali são um emblema disso. Confinados em uma terra de Minas Gerais agora repleta de capim, privados da caça e do acesso à paisagem na qual outrora viviam, não deixaram entretanto de possuir uma intensa e fascinante produção ritual. Antenados, fizeram em certa festa um telefone celular de argila, utilizado para a comunicação com os espíritos das lontras3.





Notas
1. Lévi-Strauss, Claude & Eribon, Didier. De perto e de longe – entrevista com Claude Lévi-Strauss. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988.
2. Kopenawa apud Viveiros de Castro, Eduardo. "A floresta de cristal". Cadernos de Campo 14/15, 1998, pp. 319-338.
3. Imagens do filme Hemex e Xunin, Terra Indígena do Pradinho, 2005 (acervo de Rosângela de Tugny).

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Poéticas indígenas


Àwọn ewì ti ìbílẹ̀.                                                     Poéticas indígenas.

Àkójọ́pọ̀ Itumọ̀ (Glossário).
Ìwé gbédègbéyọ̀  (Vocabulário).

Àwọn, wọn, pron.  Eles, elas. Indicador de plural.
Ewì, s. Poema.
Oríkì, s. Texto de louvação ou de saudação contendo atributos ou elementos da história de uma divindade, família ou clã.
Ti ìbílẹ̀, ti ilẹ̀, ti ìlú, ti ọmọ-ìbílẹ̀, adj. Indígena, aborígene.
Ọmọ-ìbílẹ̀,  ẹ̀yà abínibí, onílẹ̀, ìbílẹ̀, s. Índio, nativo,  aborígine, indígena.
Ti, prep. De (indicando posse).

Yanomami

por Pedro Cesarino
fotos Claudia Andujar

Yanomami


A educação formal brasileira, como se sabe, possui uma base euroamericana. Quando terminamos o segundo grau, adquirimos uma noção geral sobre as artes e literaturas francesas, inglesas ou norte-americanas, que constituem assim o repertório cultural de qualquer cidadão. Os pressupostos que aí se formam sobre expressões estéticas e intelectuais são marcados, porém, por uma imensa e antiga lacuna. Não sabemos praticamente nada sobre os povos indígenas (para não falar dos africanos), ignoramos completamente os seus regimes de pensamento e de criação. Se estivéssemos no México, teríamos no meio da praça central da capital uma imensa pirâmide de pedra azteca. Sua imponência serve como advertência para o processo de dominação (física e espiritual) que se iniciou há cinco séculos. Com exceção, talvez, do que acontece na Amazônia contemporânea, onde os índios têm uma presença maior nas cidades, o Brasil permanece ignorando as produções culturais de seus povos indígenas.

As lacunas de nosso sistema educacional não são responsáveis apenas pelo desconhecimento sistemático dos universos indígenas, mas também pela disseminação de uma série de estereótipos que inviabilizam uma compreensão, ainda que mínima, de tais povos. Imaginamos assim (e mesmo quando simpatizamos com os habitantes da floresta) que eles ainda permanecem no estado de natureza, que são primitivos, simplórios, pouco sofisticados, repetitivos ou mesmo ingênuos. Donde a razão para publicar e traduzir as suas histórias em livros infanto-juvenis, aproximados automaticamente de toda aquela cultura popular genérica povoada pelos sacis, cecis, peris e mulas sem cabeça. Imaginamos, assim, que se trata de algo bastante distinto das literaturas clássicas, provenientes da Grécia antiga e do velho continente, produzidas pela civilização por meio da escrita. Este panorama, claramente etnocêntrico, serve para justificar, ainda que silenciosamente, a submissão dos povos indígenas aos nossos critérios políticos, econômicos e culturais. Mas o que, afinal, eles têm a ver com isso? Que espécie de pensamento criativo produziram nos últimos milênios?

Antes de mais nada, é preciso esclarecer um ponto: existem inesgotáveis maneiras de se produzir complexidades (de pensamento, de sentido), a despeito daquela com a qual estamos acostumados, derivada da escrita e de uma civilização que se destaca pelo domínio da tecnologia. Sob o aparente despojamento de suas construções e artefatos, os povos indígenas construíram sistemas de pensamento e expressões criativas que, ainda hoje, escapam à compreensão dos melhores cientistas das principais universidades do Ocidente. Trata-se de sistemas que não têm exatamente a ver com a nossa imagem genérica da cultura popular (que, evidentemente, tem também o seu inestimável valor). Os sistemas indígenas se aproximam bastante, diga-se de passagem, dos pensamentos e das artes chinesas ou japonesas.1

Vamos partir aqui do princípio de que há poesia por toda parte. Mesmo assim, não se pode tomar as experiências poéticas indígenas pelo gênero literário que estudamos através de Camões ou de Fernando Pessoa. As poesias de toda parte implicam, portanto, em formas diversas de experiência e de criação. Estas são marcadas por distintas estruturas de língua e de pensamento, mas também por instituições políticas, processos de educação, entre outras características. Por conta disso, os problemas de interpretação e de tradução se multiplicam, mas não a ponto de se tornarem um impedimento para a compreensão das poéticas da floresta. Suas artes verbais, ou artes da palavra, são bastante distintas, portanto, do que estamos acostumados a ver como literatura escrita. Seguem outros critérios de composição, de criação, de autoria, de recepção e de fruição estética. Fazem sentido em um outro registro de realidade que tendemos a rotular como "mítico" ou "fictício" por contraposição aos conhecimentos científicos modernos.

yanomami_2

yanomami_2


Entre os povos indígenas, é possível aprender cantos com os espíritos dos animais. Aliás, grande parte da cultura dos povos da floresta veio deles. Os Marubo, por exemplo, um povo do Vale do Javari (Amazonas), dizem que seu antepassado Vimi Peiya aprendeu a fazer grandes malocas e cestarias, bem como a caçar com arco e flecha, com o povo que vive nos rios. Tratam-se, a rigor, dos espíritos das sucuris e demais habitantes das águas, que concebem a si mesmos como pessoas. Muitos de nós, ocidentais, vamos às universidades à procura de conhecimento. Na Amazônia, um xamã (ou pajé) pode obter seus cantos dos espíritos das árvores, que são imortais, mais sabidos e belos do que nós, os viventes. Para compreender as narrativas e os cantos indígenas, torna-se então necessário conhecer um pouco mais dos mundos em que eles são criados. Veja a tradução do canto de um xamã marubo, Armando Cherõpapa. O canto pertence ao espírito do gavião preto, que visita o corpo de Armando e canta através dele. É por isso que, na Amazônia, os povos indígenas costumam dizer que os xamãs (ou pajés) "são como um rádio". Eles são os responsáveis por transmitir as falas e cantos dos espíritos dos animais, das árvores e de outros elementos disso que chamamos de "natureza". Armando, na verdade, não é exatamente o autor do canto que segue, mas o seu transportador:

    koin rome owaki         flor de tabaco-névoa
menokovãini            caindo e planando
        naí koin shavaya        à morada do céu-névoa
 shavá avainita          vai mesmo voando

    ave noke pariki        assim sempre fomos
        yove mai matoke     na colina terra-espírito
          koin mai matoke        na colina da terra-névoa
       shokoivoti               há tempos moramos 2


O espírito do gavião está aí dizendo como surgiu: a partir das flores de tabaco desprendidas que vão voando para o Céu-Névoa, o último dos patamares celestes da cosmologia marubo. Sim, neste mundo há diversos patamares ou estratos celestes, que possuem os seus diversos habitantes, aldeias, festas e cantos. Os espíritos que ali vivem são mais antigos do que os Marubo; existem desde os tempos do surgimento. Este tipo de canto que aí está traduzido pode, então, ser chamado genericamente de "canto xamanístico" ou de "canto de pajé". Muitos povos indígenas possuem cantos similares, tais como os Araweté e os Kayabi (do Xingu), os Yanomami de Roraima, entre tantos outros.

Aos cantos xamanísticos somam-se, ainda, diversos outros gêneros, tais como as falas de chefe, os cantos de cura, os diversos cantos de festas e rituais, as narrativas míticas, entre outros. Cada povo tem as suas próprias artes verbais, todas elas sofisticadas, diversificadas e bastante vivas ainda nos dias de hoje. Faltam, no entanto, livros e traduções que revelem isso também para nós, não-índios. A antropóloga e lingüista Bruna Franchetto, uma das maiores especialistas em línguas indígenas do Brasil, traduziu este belo canto tolo dos Kuikuro (Xingu), aqui reproduzido parcialmente:

Que nasçam asas em nós
para aportar atrás da beira d'água
irei feito beija-flor

Não podes ficar aqui
para namorarmos
leve-me contigo
vamos para a tua aldeia

'Vou contigo'
disse-me a mulher
de canoa ela se foi
na nossa frente

Lá, em Aitolóu
sentirei saudades de ti
lá, na terra dos bakairí
sentirei saudades de ti (...) 3

Este canto-poema, referente às relações entre amantes, é um bom exemplo do lirismo que se encontra em muitas poéticas indígenas. Elas costumam ser marcadas pelas distâncias e separações que marcam as relações de parentesco, muitas vezes estendidas entre aldeias distintas, separadas por longas viagens pelos rios. Isso confere uma certa qualidade nostálgica a muitas de suas criações verbais, que pode ser encontrada também nas narrativas míticas. Estas, porém, não se referem apenas a sentimentos ou impressões de sujeitos determinados, tal como nos dois cantos acima citados. Elas tratam de temas diversos tais como o surgimento do céu e da terra, dos antepassados, dos animais e dos próprios brancos, entre outros episódios que constituem a base dos conhecimentos indígenas.

Os Guarani possuem também uma rica mitologia, bem como um vasto conjunto de rezas e cantos cerimoniais. São provas vivas de que as mudanças sociais não levam necessariamente ao desaparecimento dos conhecimentos tradicionais, muito embora dificultem bastante suas vidas e os processos de transmissão de seus cantos. O problema, aliás, não escapa à reflexão dos próprios cantadores-poetas, como vemos nessa tradução feita pelo poeta Douglas Diegues (a partir de um canto coletado por Guilhermo Sequera). Reproduzo, novamente, apenas um trecho:

Queremos
Encher a terra de vida
Nós os poucos (Mbyá) que sobramos
Nossos netos todos
Os abandonados todos
Queremos que todos vejam
Como a terra se abre como flor4






Notas
1. Como exemplo, veja o que diz o antropólogo Claude Lévi-Strauss em um artigo chamado "O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da América" (publicado em Antropologia Estrutural. São Paulo, Cosac Naify, 2008).

2. Tradução de Pedro Cesarino.

3. Franchetto, Bruna. "Tolo Kuikúro: Diga cantando o que não pode ser dito falando”. in Invenção do Brasil, Revista do Museu Aberto do Descobrimento, Ministério da Cultura, 1997: 57-64.

4. Diegues, Douglas (Org.). Kosmofonia Mbya-Guarani. São Paulo, Mendonça & Provazi editores, 2006.


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Astronomia (Ìtòràwọ̀)

                         Astronomia Tukano

Por Melissa Oliveira, antropóloga, integrante do programa Rio Negro/ISA
constelacoes.tukanoCrédito: AEITY/ACIMET -editoração gráfica: Renata Alves de Souza

Desde 2005 um amplo processo de pesquisa tem sido realizado no âmbito de projetos de educação e manejo ambiental protagonizados por indígenas do médio rio Tiquié, organizados na Associação Escola Indígena Tukano Yupuri (AEITY) e na Associação das Comunidades Indígenas do Médio Tiquié (ACIMET), em parceria com profissionais do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental. Este artigo é fruto desse processo, mais especificamente da experiência de pesquisa sobre astronomia, realizada em parceria com o físico Walmir Thomazi Cardoso da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e SBEA (Sociedade Brasileira para o Ensino de Astronomia). Nesta buscou-se identificar o ciclo de constelações tukano e desana, registrar os mitos de origem destas constelações e observar e descrever os fenômenos ecológicos, econômicos e rituais associados a esse ciclo. A constante interlocução com o conhecedor Uremiri José Azevedo, tukano, e seu filho Seribhi Dario Alves Azevedo, da comunidade Bote Purĩ Bua, no médio Tiquié, foi fundamental para o desenvolvimento deste texto.

Através do universo: as constelações na cosmologia dos grupos Tukano do rio Tiquié, alto rio Negro

Os povos indígenas, como outros povos do mundo, possuem conhecimentos específicos em relação ao cosmos - sua origem e configuração - e dão significados próprios aos fenômenos que a ciência ocidental denomina astronômicos.
Os grupos Tukano Orientais1 do alto rio Negro são exímios observadores do céu e não raro procuram mostrar aos que entre eles se encontram as constelações, a lua, o sol, Vênus, a Via Láctea, apontando-os, nomeando-os em suas línguas e contando suas histórias. Talvez seja por isso que as constelações têm sido há muito tempo foco de interesse e de descrição de estudiosos que escreveram sobre esta região. Há registros desse tema em textos produzidos por viajantes, missionários, antropólogos e mais recentemente nas publicações realizadas pelos próprios conhecedores indígenas.

Ñohkoa mahsã - Classificações tukano e desana das constelações

Os Tukano possuem um modo muito próprio de classificar as constelações, que são seres ou gentes, gente-estrela(ñohkoa mahsã), que vivem na camada do céu (umuse pati). As constelações são consideradas objetos ou seres da época da Gente do aparecimento (Bahuari mahsã),  a primeira humanidade que surgiu na maloca do Céu(Umuse Wikhã) e que realizou imersões na terra para propiciar as condições de existência da humanidade atual2.
Em certos episódios da mitologia, os seres ou objetos, que hoje formam as constelações, foram lançados ao céu e se transformaram em gente–estrela (ñohkoa mahsã). Na fala de Kumarõ Guilherme Azevedo (Tukano, sib3Hausirõ porã) os ñohkoa mahsã são brilhosos e têm objetos de ouro (siõpurĩ) como brincos e os bancos. SegundoUremiri José Azevedo (Tukano, sib Ñahuri porã) são também seres perigosos e venenosos, por isso não encostam uns nos outros e guardam certa distância entre si no espaço.
Categorizadas como gentes (mahsã), as constelações estão inseridas num sistema de compreensão, classificação e ordenação do mundo no qual uma noção de parentesco marcada pela segmentação e a hierarquia é idioma central de socialidade. Esta noção não se restringe apenas às relações entre os seres humanos, mas se estende a outros domínios, de modo a reger as relações entre as diversas gentes que habitam o cosmos4.
Os Tukano e Desana identificam um grupo de constelações, dentre as quais distinguem algumas que consideram “constelações-chefe” e que são consideradas as “mais importantes”, sendo chamadas Ñohkoa Diarã mahsã. São elas: Aña, Pamo, Muhã, Dahsiu, Yai, Ñohkoa Tero, Wai kahsa, Sio Yahpu, Diayo, Yhe. O termo diarã é comumente traduzido como “reais, puros” e também é usado em referência a questões de definições étnicas, por exemplo, para se referir a alguém considerado um legítimo tukano, usa-se a expressão Yepa mahsu diagu5.
Ao serem perguntados sobre o que caracteriza uma constelação como sendo “importante” ou “chefe”, dizem que são “as maiores” e aquelas cujo ocaso [desaparecimento aparente do astro no horizonte oeste] está relacionado às “grandes chuvas”, ou seja, sua importância está relacionada à sua extensão e à sua associação com a época de inverno.
A tabela abaixo reproduz o ciclo de constelações dos Tukano e Desana do rio Tiquié e indica também a região do céu em que estão situadas e a época do ocaso de cada uma delas6:

Nome da constelação em Tukano7/ PortuguêsÁrea do céu de referência dos não-indígenasMês do calendário Juliano gregoriano (não-indígena) em que a constelação está se pondo
Aña siõkhã / Estrela que ilumina jararacaLibraSetembro, outubro, novembro - meados desse mês, e eventualmente até dezembro
Aña ñemeturi / Fígado de jararacaCorvoidem
Aña nimaga / Bolsa de veneno de jararacaEscorpiãoidem
Aña dieripa / Ovos de jararacaEscorpiãoidem
Aña ohpu / Corpo de jararacaEscorpiãoidem
Aña pihkorõ / Rabo de jararacaSagitárioidem
Siphe Phairo /Jararaca de ânus grandeUrsa maiorCai entre aña siõkhã e diaso.
Pamo oaduhka / Osso de TatuÁguiaDezembro
Pamo duhpoa /Cabeça de TatuÁguiaidem
Pamo uhpu / Corpo de TatuÁguia e Vulpéculaidem
Pamo pihkorõ / Rabo de TatuSetaidem
Muhã / JacundáEstrelas de AquárioFevereiro - início a meados do mês
Dahsiu / CamarãoCatálogo de Hipparcus e Estrelas de Aquário principalmenteidem
Yai siõkhã / Estrela que ilumina a onçaNão identificadoMarço até primeira quinzena (barba e início da cabeça da onça); segunda quinzena de março (corpo da onça); rabo da onça se põe até meados para final de abril, bem junto das Plêiades.
Yai duhpoa / Cabeça da onçaHipparcus e Cassiopéiaidem
Yai useka poari /Bigode de onçaNão identificadoidem
Yai ohpu / Corpo da onçaCassiopéia, Andrômeda e Perseuidem
Yai pihkorõ / Rabo da onçaPerseuidem
Ñohkoa Tero (Sio yahpu mahkũ) /Aglomerado de estrela
(Filho de Cabo de enxó)
Plêiades
(3 estrelas próximas a Ñohkoa Tero)
Abril, meados para o fim do mês
Wai Kahsa / Jirau de peixeHyades no touroAbril/Maio, fim do mês de abril até meados de maio
Kaĩ Sarirõ / Suporte de cérebro/tipo de armadilhaEntre Hyades e Órion
Sio Yahpu (Ñohkoa tero mahkũ) / Cabo de enxóÓrion
(3 estrelas próximas a Sio Yahpu)
Maio, meados para o final do mês
Diayo / Ariranhas3 estrelas não identificadas
Yaka / Peixe CascudoPossivelmente Cão menor
Bihpia / PássaroPossivelmente entre Gêmeos e Cão Maior
Ñamia / Saúvas da noiteNão identificado
Purĩ / FolhasNão identificado
Tohto / Árvore matá matáNão identificado
Uphaigu/ JabutiCruzeiro do Sul
Yhe / GarçaVirgem e Cabeleira de BereniceEm Agosto e Setembro ocaso de toda a constelação
Ñamakoro / Não identificado
Certas constelações, cujo ocaso se realiza concomitantemente ou seguidamente, são consideradas constelações parceiras, nohkoã bahparitirã. Esse é o caso da dupla Muha e Dahsiu e do conjunto Nohkoa tero, Wai Kahsa, Sio Yahpu; e do grupo Diayo e das constelações Yaka, Bihpia, Ñamia e Purĩ.
Outro ponto que merece destaque na classificação das constelações tukano é que algumas delas, mais especificamente Aña (Jararaca), Pamo (Tatu) e Yai (Onça), são concebidas como constelações segmentadas, divididas em partes que correspondem às partes dos corpos dos animais que elas representam.
A constelação Aña (Jararaca) está constituída por: Aña siõkhã (estrela que ilumina a jararaca), Aña duhpoa(cabeça), Aña nimaga (bolsa de veneno), Aña ñemeturi (fígado), Aña dieripa (ovos), Aña ohpu (corpo) e Aña pihkorõ (rabo).
 ana.1.circulos
As partes da constelação Aña (Jararaca): a cabeça, a bolsa de veneno,
o fígado, os ovos, o corpo e o rabo (da esquerda para a direita).
Pamo (Tatu) é composta por: Pamo siõkhã (estrela que ilumina o tatu), Pamo oaduhka (osso), Pamo ohpu (corpo) e pamo pihkorõ (rabo). Já a constelação Yai (Onça), por sua vez está dividida em: Yai siõkhã (estrela que ilumina a onça), Yai useka poari (bigode), Yai duhpoa (cabeça), Yai ohpu (corpo) e Yai pihkorõ (rabo).

A segmentação das constelações também pode ser compreendida à luz do sistema de organização social tukano. A sua divisão entre cabeça, corpo e rabo guarda inegável relação com os termos utilizados na classificação e hierarquização dos sibs tukano. Cada sib se originou de uma parte específica do corpo da anaconda ancestral e assim os sibs são considerados da “cabeça”, do “corpo” ou do “rabo”, o que estabelece uma ordem hierárquica entre os mesmos: os sibs de mais alto nível são considerados “cabeça” e os de mais baixo são considerados “rabo”.
Os eventos mitológicos relativos à origem destas constelações segmentadas narram histórias de personagens que, de diferentes maneiras, foram mortos, cortados, despedaçados ou segmentados e lançados ao céu, transformando-se em gente-estrela (ñohkoa mahsã), em constelações.

siõkhã e seus significados

Siõkhã é, para os Tukano e Desana, a estrela que fica próxima ou a frente de uma determinada constelação e que se põe antes desta. Ela está lá para “iluminar”, “guiar o caminho” das constelações no seu movimento de passagem pelo céu [sentido leste-oeste]. O siõkhã é considerado parte das constelações e seu ocaso está associado à ocorrência de invernos.

siokha.onca.circulo
Yai siõkhã (estrela que ilumina a onça) e constelação Yai (Onça).
AEITY/ACIMET - editoração gráfica: Renata Alves de Souza
No depoimento8 de Uremirĩ José Azevedo (Tukano, sib Ñahuri porã), o siõkhã alcança um significado mais profundo, relacionado ao contexto ritual, pois representam os “irmãos-chefe”, responsáveis por guardar ornamentos cerimoniais que estão dentro das constelações.
“... os siõkhã são as estrelas que estão na frente das constelações e recebem o nome dos “irmãos chefes” [referência aos irmãos ancestrais dos Tukano]. A primeira estrela de Aña [Jararaca] é Yupuri, que está iluminando essa jararaca, Seribhi, irmão menor de Yupuri, vem na frente de Pamo [Tatu], Doe [irmão maior], está na frente de Yai duhpoa [Cabeça da Onça]... Todos os ornamentos que a pessoa usa, seja o kumu [benzedor], ou o pajé, pode ser os ornamentos de cabeça, o colar de quartzo, o cinto de dentes de onça, yuhtasero [faixa de baixo do joelho], kihtio[chocalho que se põe nos tornozelos], até as flautas sagradas, todos os ornamentos deles, isso que eles estão alumiando pra poder proteger mesmo... Eles guardam os ornamentos onde eles moram... Por isso que tem umas estrelas assim perto das constelações... Estas estrelas iluminam estas constelações e dentro destas constelações estão todos estes ornamentos...”9

Depoimento de Uremirĩ José Azevedo. Tradução: Seribhi Dario Alves Azevedo.

O ciclo de constelações e os demais ciclos

Para os Tukano Orientais, os movimentos leste-oeste que as constelações realizam conformam um ciclo astronômico anual. Os Tukano e Desana do médio Tiquié atribuem grande importância ao movimento de ocaso das constelações, concebendo-o como marcador da ocorrência de invernos ou enchentes, designados como poero(enchente de rio). Os invernos levam os nomes das constelações que estão “baixando” em determinada época. Atualmente também são utilizados eventos do calendário cristão para definir os invernos, por exemplo, Yai poero(enchente de onça) também é chamada enchente da páscoa, sendo muito comum o uso destes termos no dia-a-dia. O ocaso de cada parte de uma constelação é associado à ocorrência de um período de chuvas, que pode ser curto ou longo, dependendo da extensão de sua parte. As enchentes relacionadas ao ocaso do corpo da onça e do corpo da jararaca, por exemplo, são longas, visto que estão associadas às partes grandes destes animais.
Esses invernos são intercalados por verões curtos ou mais longos, chamados kuma ou wetiro (vazante do rio). Os verões mais longos são nomeados de acordo com outros fenômenos, como períodos dos ciclos de determinada fruta, ou animal. Já os pequenos verões, muitas vezes, recebem o nome da constelação vigente. Os invernos e verões marcam a ocorrência de uma série de fenômenos ecológicos que por sua vez determina a realização de atividades econômicas e rituais. A inter-relação de todos estes ciclos de fenômenos constitui um calendário astronômico, ecológico, econômico e ritual.
Tanto na fala dos conhecedores tukano e desana como na literatura, Ñohkoa Tero (Plêiades) é a constelação mais diretamente relacionada ao ciclo ritual. Para os Tuyuka, por exemplo: “o ano é definido pelo ciclo da grande constelação de Plêiades. Quando ela aponta no nascente de madrugada é sinal de ano novo. Neste período as madrugadas têm um nevoeiro frio (yusuare), é tempo de iniciação masculina, coincidindo aproximadamente com o mês de julho. O ano começa, portanto, com o fim das enchentes [em geral segunda metade de julho]” (AEITU: 2005).
Segundo Hugh-Jones (1979), o timing do ritual de jurupari dos Barasana está intimamente relacionado com os movimentos da constelação Plêiades no céu. Os Barasana dizem que o jurupari deve ser realizado quando a pupunha está madura (fevereiro-março), também dizem que deveria ocorrer antes da chegada da chuva de Plêiades, aquela que marca o início da principal estação chuvosa e causa um aumento dramático do nível dos rios.

Imagens das constelações na mitologia tukano

As constelações estão atreladas a eventos vividos pelos personagens míticos que constituíram a primeira humanidade. Nessa época não havia a divisão nítida entre grupos étnicos e sibs e, portanto, as regras de parentesco e de casamento não estavam bem estabelecidas. As narrativas relativas à vida destes personagens falam muitas vezes de sua desobediência ou mau comportamento ou de seus casamentos com mulheres não-humanas, que fracassaram por motivos diversos: morte das esposas, incompatibilidade entre os modos de vidas da esposa e do esposo.
Os relatos sobre a origem das constelações estão presentes em narrativas mais amplas sobre a época da Gente de Aparecimento e, na maioria das vezes, se intercruzam. As constelações não possuem um significado único ou fixo, podem ter vários significados e corresponder a múltiplas imagens de acordo com as diferentes versões de um mito, ou até mesmo ao longo de uma única narrativa.
Um exemplo ilustrativo é a história que relata a origem da constelação Aña (Jararaca). Sua origem está indiretamente inserida na história de Yepa Oakhu (ancestral dos Tukano, também chamado Yepa Muhipũ ou Lua), seu irmão menor e as filhas de Buhpo, o Trovão - que são Aña mahsã (gente-jararaca). Nesta narrativa também está presente a imagem de Sio Yahpu (cabo de enxó).
Veja a seguir um resumo do mito narrado por Yupuri Feliciano Azevedo (Tukano, sib Ñahuri Porã).
Yepa Oakhu vivia na sua casa yohkoãdiakawi (casa das estrelas). Todo dia via o reflexo da constelação Sio Yahpu (cabo de enxó) e havia uma estrela que era a mais bonita dessa constelação. Um dia ela apareceu fisicamente e ele casou com ela. Buhpo, o Trovão, tinha inveja dele pelo fato deste não querer se casar com suas filhas, Aña mahsã (gente-jararaca).

Buhpo convidou Yepa Oakhu para ir a um caxiri com intuito de matar sua esposa. A esposa não foi à festa, mas foi morta por uma cobra no porto. Yepa Oakhuuhpo, que morreu. Oakhu decide ir embora, mas seu irmão menor fica, pois está namorando uma filha de Buhpo.

Oakhu chega em casa e vê sua esposa morta transformada em peixe pirarara e seu filho transformado em pássaro pusikhá. Decide voltar para buscar seu irmão. A filha de Buhpo já havia matado seu irmão. Chegando lá é convidado pela filha do Buhpo (gente-jararaca) para ir tomar banho no porto. Ela estava tecendo yuhtasero (tornozeleira). A filha do Buhpo tenta matá-lo transformando um toco de pau em jararaca. Yepa Oakhu corta a cabeça da jararaca com Sio yahpu (cabo de enxó). Era o irmão maior dela. Depois sai mais uma cobra de dentro do pau oco. Yepa Oakhudecepou a cabeça da cobra. Era o irmão menor dela.

Narrativa publicada na Coleção Narradores Indígenas, volume 5, 2003.
Uremirĩ Aprígio Azevedo e Ahkuto Mariano Azevedo (Tukano, sib Ñahuri porã) ao narrarem a mesma história explicam que: “(...) Yepa Oakhu corta a jararaca com Sio Yahpu (cabo de enxó), e ela é lançada ao céu, tornando-se a constelação de Aña (Jararaca)”.
Segundo Diakuru e Kisibi (Desana, sib Wahari Diputiro porã), as histórias dessas constelações se articulam e fazem parte de uma narrativa semelhante, mas aqui é o herói que usa uma jararaca para vingar a morte de sua esposa.
A constelação Aña surge para Deyubari Goãmu10 vingar-se de seus cunhados (neká masã, gente-estrela) que causaram a morte de sua esposa enquanto recolhia peixes. Durante a festa, Deyubari Goãmu tirou as cordas dos pelos de onça e de macacos presas nos seus ornamentos de cabeça e com elas formou o corpo de uma cobra jararaca. Com seu enfeite da canela (waituru) fez a cabeça da jararaca, com fio de tucum formou o dente da cobra e com o caapi 11 fez o veneno dela. Enrolou a jararaca no yegu (cetro-maracá) e com ele tocou o pé do segundo e do terceiro bayá (mestre de dança) para que a cobra os mordesse. O segundo bayá morreu na hora, o terceiro foi salvo com orações e remédios do mato.
Durante a viagem de volta pegou a jararaca que carregava nas costas e jogou-a para o céu. Quando ele estava dançando na maloca de neká masá (gente-estrela), a corda ficou toda banhada de suor, por isso ela se transformou em chuva (inverno). Como Deyubari Goãmu jogou a jararaca para longe dele, o inverno associado a ela é comprido. Deyubari Goãmu amaldiçoou a humanidade e escondeu os peixes no ânus da jararaca para que a humanidade não pudesse mais encontrar peixes e ficasse triste junto com ele, é por isso que nessa enchente é difícil encontrar peixes (Fernandes e Fernandes, 2006).
Uma leitura interessante de se fazer dos mitos de origem de constelações é privilegiar, dentre as múltiplas imagens e significados das constelações, aqueles relativos ao contexto ritual. Esta leitura não é única possível, mas detém inegavelmente uma riqueza ímpar tanto em termos estéticos como cosmológicos.
A constelação Aña (Jararaca), por exemplo, possui diversas imagens e significados a ela associados, como pudemos descobrir ao longo deste texto. Na história de Yepa Oakhu há a tornozeleira Yuhtasero que corresponde ao corpo de Aña; os dentes de cobra que estão associados à cabeça de jararaca e os filhos de Buhpo que são gente-jararaca. Já na história de Deyubari Goãmu aparecem o fio de tucum, como dente da jararaca, e o caapi, o veneno da cobra, como imagens associadas a Aña.
Há um outro mito, sobre a origem da noite, que demonstra mais claramente que um dos modos de se compreender a correlação entre constelações, contexto ritual e adornos cerimoniais é atentar ao fato de que, na mitologia tukano, a “caixa da noite” pode ser interpretada como uma caixa de adornos cerimoniais. Neste mito os irmãos-chefe, correlacionados anteriormente aos siõkhã, desempenham papel fundamental. A análise de diferentes mitos torna evidente a relação entre as constelações, os ornamentos rituais e as estrelas siõkhã, delineando-se, assim, um significado profundo para as constelações na cosmologia tukano.
Veja aqui a versão resumida da narrativa de Ñahuri Miguel Azevedo (Tukano, do sib Hausirõ porã).
Os Pamuri mahsã (Gente da Transformação) ainda viviam na casa do Rio de Leite, e não tinham a divisão do tempo em dia e noite. Por isso vão até a Ñamiriwi (Casa da Noite) pedir ao Dono da noite (Ñamirisota) a caixa da noite. A caixa da noite consiste numa caixa de adornos cerimoniais, que contém todos os ornamentos e enfeites de danças. Para entregá-la a DoetiroYupuri e Yepasuria (ou Ñamisuria), o Dono da Noite prepara uma cerimônia. Ao entregá-la ele explica a eles cada objeto que contém a caixa e como eles devem ser utilizados posteriormente.

Diz ainda que nos quatro pontos cardeais existem ganchos que pendem a noite. Ensina, depois da meia-noite, a desmanchar a amarração dos ganchos que seguram a caixa, e como eles deveriam guardar os instrumentos e ornamentos, depois de um movimento de dança. Isso foi feito até o amanhecer e é por isso que os bayá dançam até hoje durante toda a noite. Daí segue-se o evento em que eles abrem a caixa antes do combinado e deixam sair uma nuvem escura, chuvisco e temporal. O único que conseguiu seguir as recomendações do Dono da Noite foi Yepasuria, que se ornamentou, pronunciando o nome de cada enfeite e juntando-os. À meia-noite começou a reza desmanchando os ganchos presos nas quatro direções. Começou a tirar e guardar os ornamentos, assim o dia começou a chegar. Assim que começou o dia e a noite

Narrativa publicada na Coleção Narradores Indígenas, volume 5, 2003.

Notas

1. Quando utilizo Tukano Orientais me refiro de maneira geral à família lingüística que abrange etnias como: Tukano, Desana, Tuyuka, Barasana etc. Quando utilizo apenas Tukano me refiro ao grupo étnico.

2. Na mitologia tukano Umukho Ñehku, o Avô do Universo criou este mundo e através do sopro do cigarro, a primeira humanidade, Gente do Aparecimento: Yepa Oãkhu, ou Yepa Muhipu (Lua), Dehsubari Oãkhu, Warãri Oakhu, Yupuri Basebo, Buhtuiari Oãkhu (homens) e Amõ ou YeparioYupahkó, Yepáñiõ, Pirõ Duhigó (mulheres). Yepa Oãkhu através dos conhecimentos obtidos com o Avô do Universo criou a segunda humanidade: Doetiro, Yupuri Buú (homens) e YeparioYupahko, Duhigo (mulheres). No processo de formação da humanidade atual, os primeiros humanos se transformaram primeiramente em pássaros, atravessaram o céu pela Via Láctea, adentraram no Lago de Leite, se transformaram em peixes, realizaram uma viagem no ventre de uma Cobra Canoa - a anaconda ancestral, ao longo do Rio de Leite - e finalmente emergiram na terra através do Buraco da Transformação, como Pamuri mahsã, Gente da Transformação.

3. Termo antropólogico usado para designar grupos de descendência em linha paterna, nomeados e hierarquizados.

4. Não faltam exemplos para ilustrar esta extensão do sistema terminológico e de parentesco a outros domínios que não o dos seres humanos. Alguns exemplos: segundo depoimentos dos kumua (especialistas xamânicos ou benzedores) tukano do alto Tiquié, entre as várias espécies de manivas que eles identificam, algumas são consideradas “manivas-chefe”, pois são aquelas que surgiram no início do mundo. Em relação aos peixes, Cabalzar afirma que “assim como os homens, organizados em grupos nomeados e hierarquizados, os peixes também estão agrupados, têm seus chefes, bayaroa e kumua (...)” (2005: 76).

5. Ver verbete di’a no dicionário Tukano-Português de Ramirez (1997).

6. Tabela adaptada de Cardoso (2007). Para a descrição detalhada da composição de cada uma das constelações, consultar esta referência.

7. Os nomes das constelações foram registrados na língua Tukano que é a língua atualmente falada pelos Tukano e Desana do rio Tiquié.

8. Depoimento traduzido por Seribhi Dario Alves Azevedo.

9. Estes “irmãos-chefe” ou ancestrais dos Tukano também são associados ao planeta Vênus. Na versão deÑahuri Miguel Azevedo (Tukano, sib Hausirõ Porã) a aparição matutina de Vênus corresponde a Seribhi, “irmão menor”, e a aparição noturna corresponde a Doe, “irmão maior”. Os irmãos, por não obedecerem aos conselhos de seu pai, foram jogados por seu pai Basebo, o dono da alimentação, em lugares opostos do mundo, leste e oeste. Ao serem colocados em seus lugares se transformaram em Ñohkoa Mahsã,gente-estrelaSeribhi siõkha Doe siõkha (Ñahuri e Kumarõ, 2003: 97).

10. Este personagem corresponde a Dehsubari Oãkhu na mitologia tukano e é da primeira humanidade,Gente do Aparecimento.

11. Bebida alucinógena ingerida em contexto ritual, feita a base de Banisteriopsis sp.

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