Ẹ́gíptì ti Fáráò.
Egito faraônico.
Egito faraônico.
O Sentido da Luta de Théophile Obenga: O Egito Faraônico e os Desafios do Tempo Presente
Recebida: 18/02/2014
Aprovada: 08/03/2014
Publicada: 10/03/2014
Felipe PaivaI
Entre janeiro e fevereiro de 1974 era realizado, na cidade do Cairo, o Colóquio Internacional O povoamento do antigo Egito e a decifração da escrita meroíta. Pelo impacto do evento é possível considerá-lo como um ponto de inflexão nas pesquisas realizadas em torno do continente africano em geral e do Egito faraônico em particular. Os pesquisadores reunidos nortearam-se pela questão primordial: a reinserção do Egito no contexto africano.
A partir disso emerge uma tese revolucionária sobre o fenótipo negro dos egípcios antigos. Seu autor, Cheikh Diop, e seu então discípulo, Théophile Obenga, foram os únicos a enviar contribuições de folego para a ocasião: “nem todos os participantes prepararam comunicações comparáveis às contribuições, minuciosamente pesquisadas, dos professores Cheikh Anta Diop e Obenga. Em consequência, houve um verdadeiro desequilíbrio nas discussões”.II
A despeito desse comprovado embasamento, desde a época da sua formulação a tese de Diop e Obenga foi desmerecida por alguns como sendo panfletária, artificial e mesmo racista. O último dos ataques desferidos veio de um grupo de historiadores reunido na brochura Afrocentrismes: L’Histoire des Africains entre Égypte et Amérique. Para responder a esta publicação Obenga escreve um livro que, a parte sua grande erudição, é um verdadeiro manifesto.
Vem a lume O sentido da luta contra o africanismo eurocentrista, agora traduzido em português pelas editoras Mulemba e Pedago, que, em parceria, estão editando a coleção Reler África. Já estavam presentes, nesta coleção, nomes importantes da intelectualidade africana contemporânea, como: Paulin Hountondji, Valentin-Yves Mudimbe e Achille Mbembe.
O congolês Théophile Obenga, nascido em 1936, estudou filosofia na Université de Bordeaux, ciências da educação na University of Pittsburgh, história no Collège de France e egiptologia em Genève. Doutorou-se em letras, artes e humanidades pela Universidade de Monpellier. Foi colaborador principal da UNESCO em vários projetos relativos à história da África e até 1991 foi Diretor Geral do Centro Internacional das Civilizações Bantu. É professor em San Francisco State University.
O livro conta com nove capítulos curtos. Em cada um destes o estudioso rebate ao grupo de autores presente na publicação já referida. Logo em sua primeira linha adverte que irá se valer de um tom pouco habitual em suas publicações, mas que será necessário visto que é uma resposta aos ataques do que ele chamou de “africanistas eurocentristas”.III
O africanismo é entendido na acepção negativa que o termo comporta: como ideologia colonial. O “africanista” não é um pesquisador imparcial interessado em temas africanos, é um agente, conscientemente ou não, de um corpus ideológico e cultural mais amplo que inclui o exotismo, o paternalismo tutelar, o primitivismo e mesmo a desumanização do outro, neste caso, o africano. O “africanista” silencia a África em detrimento do discurso que o seu oposto, o colonialismo, tem dela, fazendo assim eco ao eurocentrismo.
O tema a ser debatido, o Egito faraônico, está longe de se circunscrever na esfera do exclusivismo acadêmico, o que está em jogo é a “consciência histórica africana, o futuro, cultural e político, africano”.IV Este futuro está relacionado com movimentos de envergadura global tais como o Pan-Africanismo e a Renascença Africana.
No primeiro capítulo – Assuntos africanistas. Sua insignificância – Obenga apresenta o livro que irá rebater e define as suas melhores contribuições como tendo uma extrema pobreza cultural mesmo se comparada a outros escritos africanistas. Trata-se somente de reafirmar, segundo Obenga, a ideologia eurocêntrica reforçando juízos de valor que se encontram estacionados no tempo desde Hegel.V
Desdobra-se o segundo capítulo – A psicologia e a fragilidade científica do novo africanismo eurocentrista – nele, Obenga critica Fauvelle-Aymar, pois este afirma que Cheikh Anta Diop teria uma reputação “tardia” geradora de “ambiguidades”. Para Obenga, entretanto, não há ambiguidade e contrassenso maior que classificar um investigador africano que se debruça sobre a África de “africanista”, como parece ter feito Fauvelle-Aymar.
Obenga coloca a questão em tom didático: “um professor de inglês e de Civilização Inglesa, na Universidade de Londres, de origem inglesa, não é um ‘anglicista’, mas sim um ‘investigador inglês’”.VI Assim, pesquisadores africanos devem ser reconhecidos por aquilo que são: historiadores, linguistas, filósofos, etc. Diop deveria, portanto, ser reconhecido por aquilo que foi: físico nuclear, historiador, linguista, filósofo e político, e não rotulado em termos que lhe eram estranhos.
Dessa forma, arremata Obenga:
[...] o passado só é verdadeiramente questionado no que diz respeito a preocupações actuais. Não há passado para o passado. A condição humana exige o conhecimento do passado, no presente, tendo em atenção o futuro. O africanismo, novo ou velho, jamais apresentou qualquer proposta de futuro cultural para os Africanos.VII
No capítulo seguinte intitulado, provocativamente, O Egipto faraónico: africano e negro, o pavor dos africanistas, adentra-se em uma série de polêmicas linguistas em torno do egípcio antigo. Obenga demonstra, de maneira bastante persuasiva, o parentesco entre o idioma faraônico e vários idiomas da África Sul-Saariana, tais como o Wolof. O autor defende que as antigas classificações, resgatadas pelos autores que critica, devem ser definitivamente excluídas do vocabulário analítico. Não faz sentido, para ele, pensar na língua dos faraós como sendo pertencente a uma família camítica ou afro-asiática. Obenga defende a existência de uma família negro-africana.
De resto, o historiador afirma que toda hipótese linguista mostrar-se-á infecunda se não forem levados em conta os termos históricos da questão, especialmente no que concerne ao fato de o Egito faraônico ter sido um reino africano, dentro do continente, e não localizado na “Ásia” ou no “Oriente”. Enquanto civilização o Egito foi forjado por africanos negros na antiguidade e não recebeu influências culturais extra-africanas que tenham sido determinantes. Finalmente, a verdadeira Renascença Africana, hoje em curso, tem como fundamento a rememoração de todas as civilizações africanas, o Egito faraônico dentre elas, assim como o grande Zimbabwe; Etiópia, a alta; o império Malinquê, etc.VIII
No capítulo seguinte – Como os africanistas eurocentristas caricaturam o trabalho dos africanos - Obenga retorna a Hegel e à sua acepção de que o Egito não faz parte do espírito africano para afirmar que ainda hoje tal juízo continua em vigor. O autor é contundente ao demonstrar que grande parte do chamado conhecimento ocidental, do qual a assertiva de Hegel é ponta de lança, foi fundado sobre a arrogância cultural, o colonialismo imperialista e o racismo, que acabaram criando “orientalismos”, “africanismos”, “oceanismos” e, mais recentemente, “multiculturalismos”.
Fazendo oposição a essa tradição, a abordagem africana vem interrogar o passado da África indo das origens até o tempo presente atentando que ter um conhecimento direto de todo o passado do continente, avaliando os sucessos e fracassos dos antepassados, bem como seus valores e ideais, são precondições para consolidar a Renascença Africana no atual contexto histórico.
“A história é vida”, afirma Obenga, e não “pequenas disputas intelectuais nos campus universitários”.IX A tentativa de taxar vários dos intelectuais africanos como “afrocentristas” obscurece a visão dos africanistas que não veem para além dos muros universitários e não enxergam a questão em seus contornos reais, ou seja, tratam-se de intelectuais africanos com itinerários diversos que procuram explicação histórica de si mesmos para “conhecer e tentar agarrar em mãos” o destino que lhes é comum.X
No capítulo quinto defende-se a ideologia pan-africana em detrimento da fragmentação continental. O que está em jogo é a unidade profunda do continente que encaminha para o desenvolvimento solidário e integrado. Desdobra-se daí o próximo capítulo em que Obenga procura demonstrar a veracidade da proposta pan-africana que, ao contrário do que afirmam seus críticos, não é artificial, “sonhada”, e tampouco sentimental:
A África sonhada é real quando é uma África fantasma (Michel Leiris), uma África ambígua (Georges Balandier), uma África mal repartida (René Dumont). Torna-se uma África artificial e sentimental quando é uma África egípcia e bantu, isto é, uma África geográfica, histórica, cultural, linguística.XI
O sétimo capítulo é de singular erudição. Obenga condensa em poucas páginas a longa tradição da historiografia ocidental. Com folego teórico o autor lança assertivas que devem ser lembradas em todo o trabalho historiográfico: “A história é, a um tempo, investigação e processo criativo”, algo que não exclui o compromisso com a verdade. Tal compromisso não se desvincula do posicionamento do historiador, afinal a história não é a-topológica, possuindo uma posição e um lugar de consciência e participação.XII
No seu penúltimo capítulo Obenga vai ao vocabulário africanista que, assegura, serve para escamotear a falta de conteúdo de suas afirmações. A linguagem da “ciência” colonial produziu imagens de desprezo e negação. Com seu léxico pseudocientífico o colonialismo pedia ao africano que se apropriasse da memória e da história das potências europeias e esquecesse as suas próprias, algo que causara profunda angústia coletiva. Obenga responde a esta angustia de maneira firme: “Levanta-te, povo negro, onde quer que estejas no mundo. Tens capacidade para realizar o que a tua boa vontade deseja ou ambiciona, uma vez que há majestade para ti!”XIII
No último capítulo recorda-se que no pós-segunda guerra houve um grande movimento de renascimento cultural europeu e que este esforço envolveu a labuta intelectual de vários nomes da intelligentsia nativa incluindo o então primeiro ministro britânico Winston Churchill, que lançou o projeto de uma Europa unida e próspera saída das ruínas da guerra. Entretanto, “Cheikh Anta Diop, ideólogo afrocentrista, nacionalista, pan-africanista, ex-colonizado ingrato, etc. age mal ao trabalhar para a restauração da consciência histórica e da memória colectiva africanas”.XIVAos investigadores africanos, ou que possuem uma perspectiva africana, caberia, ao invés da reconstrução, o silêncio.
No fundo Obenga faz lembrar a indagação de Gayatri Spivak: pode o subalterno falar?XV Afinal de contas, quando a noção de poder eurocêntrica imaginaria que nativos, que pareciam até então subservientes e taciturnos, algum dia fossem capazes de fazer a própria Europa desistir de sua empreitada colonial. Ou mesmo fossem capazes de dizer qualquer coisa que pudesse contrariar a lógica discursiva então vigente.XVI
Como conclusão, Obenga afirma que a despeito das caricaturas que possam ser feitas pelo discurso africanista é necessário que intelectuais africanos coloquem suas discussões em termos de Unidade e Renascença Africana. Afinal, são ideais, objetivos políticos, econômicos e culturais julgados bons e necessários, “por nós e para nós”.XVII Trata-se, também, de recusar qualquer tipo de postura chauvinista, visto que o que está em jogo na discussão é a dignidade humana como um todo, em sua carga universal, como bem resume o trecho de seu mestre, Cheikh Anta Diop, que Obenga escolheu para encerrar seu manifesto:
Aspiramos todos ao triunfo da noção de espécie humana, nos espíritos e nas consciências, de maneira que a história particular, desta ou daquela raça, se apague diante da história do homem, tout court. Não haverá mais a fazer a não ser descrever [...] [as] conquistas da civilização feitas pelo homem, pela espécie humana, na sua totalidade.XVIII
Profundamente humanista Obenga faz da história não somente um conhecimento científico autossuficiente, mas, ao contrário, ele arranca a práxis intelectual de seu engessamento cientificista para voltar a convertê-la, também, em uma “técnica”, isto é, em um instrumento de mudança social.XIX
Agindo como o chacal da conhecida narrativa de Michael Ondaatje, o historiador tem “um olho voltado para trás e outro para frente, para o caminho a seguir. Nas suas presas estão pedaços que ele traz para você, e quanto todo o tempo estiver inteiramente descoberto, vai ficar claro que já era conhecido”.XX Talvez quando estejam por fim soterrados os preconceitos colonialistas, o Egito seja visto como aquilo que é: feito africano e de toda a humanidade. Eis o sentido da luta de Obenga.
Notas
I Mestrando em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: paiva.his@gmail.com.
II J. Devisse. “Síntese do Colóquio ‘O povoamento do antigo Egito e a decifração da escrita meroíta’”. In Gamal Mokhtar.(Edit.). História Geral da África, II. São Paulo: Cortez, 2012, p. 848.
III Théophile Obenga. O sentido da luta contra o africanismo eurocentrista. Luanda: Mulemba/Mangualde: Pedago, 2013, p. 11.
IV Idem, Ibidem.
V Idem, p. 15.
VI Idem, p. 17.
VII Idem, p. 19.
VIII Idem, p. 39.
IX Idem, 48.
X Idem, Ibidem.
XI Idem, 67.
XII Idem, p.71, 74.
XIII Idem, 82.
XIV Idem, 83.
XV Gayatri Chakravorty Spivak. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. O lugar de subalterno estaria reservado, nesta situação, ao intelectual (des)colonizado. Neste caso a resposta contraria a própria Spivak: Sim, o subalterno fala. A despeito da pax hegemônica vigente.
XVI Edward W. Said. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 24.
XVII Idem, p. 89.
XVIII Cheikh Anta Diop Apud T. Obenga. Op Cit, p. 93.
XIX Josep Fontana. História. Análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998, p. 265.
XX Michael Ondaatje. O paciente inglês. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 234.
Referências Bibliográficas
DEVISSE, J. “Síntese do Colóquio ‘O povoamento do antigo Egito e a decifração da escrita meroíta’”. In MOKHTAR, Gamal.(Edit.). História Geral da África, II. África Antiga. São Paulo: Cortez, 2012.
FONTANA, Josep. História. Análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998.
OBENGA, Théophile. O sentido da luta contra o africanismo eurocentrista. Luanda: Mulemba/Mangualde: Pedago, 2013.
ONDAATJE, Michael. O paciente inglês. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
I Mestrando em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: paiva.his@gmail.com.
II J. Devisse. “Síntese do Colóquio ‘O povoamento do antigo Egito e a decifração da escrita meroíta’”. In Gamal Mokhtar.(Edit.). História Geral da África, II. São Paulo: Cortez, 2012, p. 848.
III Théophile Obenga. O sentido da luta contra o africanismo eurocentrista. Luanda: Mulemba/Mangualde: Pedago, 2013, p. 11.
IV Idem, Ibidem.
V Idem, p. 15.
VI Idem, p. 17.
VII Idem, p. 19.
VIII Idem, p. 39.
IX Idem, 48.
X Idem, Ibidem.
XI Idem, 67.
XII Idem, p.71, 74.
XIII Idem, 82.
XIV Idem, 83.
XV Gayatri Chakravorty Spivak. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. O lugar de subalterno estaria reservado, nesta situação, ao intelectual (des)colonizado. Neste caso a resposta contraria a própria Spivak: Sim, o subalterno fala. A despeito da pax hegemônica vigente.
XVI Edward W. Said. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 24.
XVII Idem, p. 89.
XVIII Cheikh Anta Diop Apud T. Obenga. Op Cit, p. 93.
XIX Josep Fontana. História. Análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998, p. 265.
XX Michael Ondaatje. O paciente inglês. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 234.
Referências Bibliográficas
DEVISSE, J. “Síntese do Colóquio ‘O povoamento do antigo Egito e a decifração da escrita meroíta’”. In MOKHTAR, Gamal.(Edit.). História Geral da África, II. África Antiga. São Paulo: Cortez, 2012.
FONTANA, Josep. História. Análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998.
OBENGA, Théophile. O sentido da luta contra o africanismo eurocentrista. Luanda: Mulemba/Mangualde: Pedago, 2013.
ONDAATJE, Michael. O paciente inglês. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.