Filọ́sọ́fi Bàntú (Filosofia banto)
Ubuntu, uma perspectiva para superar o racismo
Jean-Bosco Kakozi parte da metafísica africana para entender o racismo e, a partir dela, pensar em linhas de fuga para a desigualdade racial
Por: João Vitor Santos | Tradução Susana Rocca
Muitas reflexões acerca do racismo trazem como questão de fundo uma perspectiva xenofóbica, em última análise, a não aceitação do outro. É, por exemplo, a atualização dessa perspectiva na relação com imigrantes, numa outra faceta racista. Isso porque são vistos como intrusos, quando na verdade quem os “recebe” é incapaz de assumir o drama do povo como também um drama seu. O professor africano Jean-Bosco Kakozi Kashindi olha para essas questões raciais desde os princípios do Ubuntu, que pode ser apreendido como uma metafísica africana. Para ele, entre as inúmeras definições, Ubuntu pode ser compreendido como a humanidade do ser. Ou, como prefere, “a abstração das pessoas no conjunto de suas humanidades”. “É a ideia de que minha humanidade está ligada à sua. Logo, ‘eu sou porque somos’”, explica, ao mergulhar no princípio do reconhecimento do outro, tão forte na lógica do Ubuntu.
Porém, o que Ubuntu pode responder a reflexões em torno do racismo? A questão norteou as discussões da conferência proferida por Kakozi, ocorrida no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na quarta-feira, 25-05. Em “A dimensão ético-política de Ubuntu: Uma proposta para a superação do racismo em 'nuestra América'”, o professor destaca o postulado ético-político da metafísica africana. “Se no Ubuntu a pessoa é pessoa através dos outros, a perspectiva de humanidade vem sempre primeiro”, pontua. Ao conferir esse valor à relação entre os humanos para constituir suas humanidades, Ubuntu não despreza qualquer ser humano. É como se todas as pessoas, e suas humanidades, tivessem valor e fossem fundamentais para formação dessa humanidade, ou se preferir, para constituição da nação, do povo. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor aprofunda as ideias que nortearam sua conferência.
Jean-Bosco Kakozi é natural da República do Congo, onde se graduou em Filosofia e Ciências Humanas. Especializou-se em Religião no Centre de Formation Missionnaire Notre Dame d’Afrique, na cidade de Bukavu (República Democrática do Congo). Realizou mestrado e doutorado em Estudos Latino-americanos, com ênfase na Filosofia, História das Ideias e Ideologia, pela Universidade Nacional Autônoma do México – UNAM. Sua pesquisa é referente ao Ubuntu na África do Sul (Joanesburgo) na Universidade de Witwatersrand. Atualmente é pós-doutorando no Programa de Pós-graduação em Direito na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, São Leopoldo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como compreender a essência do Ubuntu? Em que medida se coloca como perspectiva para superação do racismo?
Jean-Bosco Kakozi - Partindo de uma definição geral, Ubuntu significa humanidade; mas desde um aprofundamento conceitual de Ubuntu, este termo tem três significados que se entrelaçam: 1) a abstração e a generalidade dos fenômenos que, na cosmovisão africano-“bantú”, constituem a realidade (o muntu [a pessoa], o kintu [a coisa], o kuntu [o modo o a maneira de expressar o mundo] e o ahantu [o espaço-tempo]); 2) a abstração e a generalidade do umuntu (a pessoa), ou seja, a humanidade como o conjunto dos humanos; 3) a humanidade como valor mesmo que se expressa como solidariedade, empatia, compaixão, generosidade...
Então, essas definições de Ubuntu aparecem condensadas no aforismo isiZulu “umuntu ngumuntu ngabantu” (a pessoa é pessoa no meio de ou através de outras pessoas), o que levou o arcebispo emérito Desmond Tutu a definir Ubuntu como “eu sou porque nós somos”. O que aqui se destaca é que uma pessoa é constituída como tal desde a comunidade, desde os outros; em outros termos, a alteridade é a condição de possibilidade da constituição do indivíduo.
Isto é fundamental no combate ao racismo. Na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, a Conquista, a colonização europeia (Portugal e Espanha) e a escravidão de indígenas e africanos estabeleceram relações sociais de dominação e exploração baseadas nos fenótipos das pessoas. O homem branco se considerou como humano por antonomásia, e os não-brancos, como menos humanos ou não-humanos. É isto o princípio anti-Ubuntu, é o princípio do “eu sou porque você não é”. Este princípio está na base do racismo, pois quando se discrimina, se exclui uma pessoa pelos seus traços físicos, se nega a ela implicitamente a sua humanidade, pois a humanidade em si não existe concretamente, mas existe em suas diversas expressões (traços físicos, culturais, línguas, religiões etc.).
Negação dos outros e de si
Então, a noção de Ubuntu denuncia o racismo e anuncia uma possibilidade de superá-lo em comunidade, em paz com os outros, já que quando se discrimina racialmente uma pessoa, estamos em presença da perda de humanidade em sentido duplo: o discriminador nega a humanidade do discriminado e, ao mesmo tempo, perde a sua humanidade. E se nos referimos às definições mencionadas anteriormente, a perda de humanidade não é um assunto menor, porque leva junto o fato de se desconectar do mundo, da realidade. Distanciar-se do mundo, da realidade não pode ser outra coisa mais do que uma autodestruição.
IHU On-Line - De que forma é possível, a partir do reconhecimento do outro, superar conflitos?
Jean-Bosco Kakozi - Reconhecer o outro, desde a cosmovisão africana “bantú”, é viver em paz, em harmonia. E aqui não se trata só de reconhecer, mas de responder ao outro, de ser recíproco para com ele ou ela. E esse outro não se limita somente às pessoas, mas se estende aos demais seres — animados e inanimados — com os que constituímos a comunidade cósmica da vida.
Assim, quando reconheço o outro e respondo a ele ou a ela, é também para meu benefício. Primeiro, porque eu o respeito, o considero e o trato como humano, isso deve abrir-me a um encontro qualitativo com ele ou ela e nos possibilita viver com dignidade. Segundo, como vivemos em uma comunidade cósmica da vida, reconhecer, respeitar e responder a outros seres (animados e inanimados) de que eu dependo, significa proteger, cuidar o ambiente que me circunda, o qual coadjuvaria a evitar conflitos sociais, políticos e econômicos. E isso conduziria à “libertação da vida” e, em consequência, beneficiaria a vida de todos, pois a minha vida depende de outras vidas e, desde a visão de Ubuntu, não há nenhuma vida humana que tenha mais valor que a outra.
IHU On-Line - Como superar a lógica fascista, que nasce do ataque e não reconhecimento do outro, a partir da perspectiva do Ubuntu?
Jean-Bosco Kakozi - Para os africanos em geral, a vida humana é um valor supremo. E, como já disse antes, não existe uma vida superior a outra, ou seja, não há seres humanos ontologicamente defeituosos ou inúteis. E outro elemento importante que encontramos em Ubuntu é que a humanidade de cada pessoa está entrelaçada com a de outras pessoas, elas me fazem humano.
Entender isto é muito relevante para superar a lógica fascista e xenofóbica. As diferenças, em vez de serem vistas como ameaças, deveriam ser apreciadas como riqueza. Eu sei o difícil que é aceitar o anterior, em um país onde imperou a lógica capitalista individualista e excludente, e agora em crise política e econômica. Minha opinião é que uma das razões fundamentais dessa crise é precisamente a não aceitação da alteridade que nos constitui. O outro (no contexto brasileiro: o pobre, o negro, o indígena e a maioria das mulheres) segue sendo como uma ameaça à classe social que tem sido privilegiada.
IHU On-Line - Que elementos essa filosofia africana oferece para pensar a realidade latino-americana e caribenha?
Jean-Bosco Kakozi - Para começar, vale salientar que para o filósofo sul-africano Mogobe Ramose, Ubuntu seria a pedra angular da filosofia africana. Aliás, seria a filosofia africana mesma. Ela tem relação estreita com a sua irmã, a filosofia latino-americana. O aporte substancial de Ubuntu a esta última está em recuperar e/ou restaurar o ser humano todo dentro da sociedade, que eu entendo aqui como uma “comunidade cósmica de vida”.
Isso quer dizer — em termos kantianos, mas ampliando o postulado ético do filósofo alemão — uma concepção do ser humano não como meio, mas como fim em si mesmo, porém esse ser humano deve ser sempre consciente da alteridade, no sentido amplo, que o constitui. É um ser humano consciente de que a especificidade que o distingue de outros seres cósmicos (consciência, vontade, liberdade) o faz mais responsável do cuidado e não da destruição ou extinção desses outros que o constituem. E tudo isso se encontra mutatis mutandis nas filosofias ou nas cosmovisões dos povos originários das Américas. A contribuição fundamental de Ubuntu ou da filosofia africana para pensar a realidade latino-americana e caribenha seria, em suma, realinhar o homem na sua totalidade no centro da preocupação. E esse “homem” é um ser que está sempre na interdependência vital com os outros seres (animados e inanimados).
Isto se encontra já nas “cosmovivências” dos povos originárias de América Latina e Caribe, pelo qual Ubuntu viria só lembrar às filosofias, às humanidade e às ciências (“sociais” ou não) latino-americanas e caribenhas que aqui mesmo há recursos inesgotáveis para pensar de outra forma a realidade da região e transformá-la. Estes recursos se encontram paradoxalmente nas cosmovisões dos povos subalternizados, oprimidos, marginalizados ou desprezados pela racionalidade ocidental.
IHU On-Line - De que forma Ubuntu se articula à ideia da Renascença Africana? E como essa experiência africana pode inspirar uma renovação na América Latina e Caribe?
Jean-Bosco Kakozi - Para além da discussão sobre o adequado ou não do termo “Renascimento Africano”, o auge de Ubuntu (desde os anos 1990), no âmbito político e acadêmico, na África do Sul, é um acontecimento a celebrar. No discurso inaugural como segundo presidente negro da África do Sul, Thabo Mbeki começou dizendo: “I am an Africa” (Sou africano). Isto foi uma tomada de posição existencial, uma reinvindicação identitária que evoca um processo de permanência de uma identidade africana. Ele nem se vestiu como se veste um rei ou uma autoridade nas sociedades “tradicionais” africanas. Falou em inglês e estava vestido “socialmente”, ou seja, à moda ocidental.
O exemplo de Mbeki contém indícios de Ubuntu, no sentido de que ele falou como sul-africano (identidade local), incluindo ao mesmo tempo a África e implicitamente o legado cultural ocidental. Isto é fundamental para o “renascer” da África, para sua descolonização. Não se trata de jogar todo o legado da colonização europeia e retornar completamente ao passado pré-colonial, mas sim partir da afirmação da identidade e cultura próprias (locais) e integrar o bom de outras culturas, neste caso a ocidental.
Tendo a África muita semelhança com a América Latina e Caribenha por terem sido colonizadas pelos ocidentais e, por isso mesmo, incorporadas como “periferias” no sistema-mundo capitalista, o que eu disse antes pode ser aplicado também à América Latina e ao Caribe. O intelectual mexicano Leopoldo Zea acertou que o problema da América Latina e do Caribe é um problema do “homem” (em sentido genérico), o problema ético. O “homem” latino-americano e caribenho, em geral, anseia mais o mundo alheio (Europa e, em certo sentido, os Estados Unidos), odiando os outros que constituem seu próprio mundo. Então, para a contínua renovação, para a verdadeira saída desta região, é preciso valorizar o próprio estado, ao mesmo tempo, aberto para incorporar o melhor do alheio.
IHU On-Line - Como se constitui e como compreender o conceito de resistência dentro da filosofia Ubuntu?
Jean-Bosco Kakozi - Em Ubuntu, como filosofia africana, o conceito de resistência está incluído no de libertação africana. A resistência dentro do processo da libertação africana se articula desde outras vivências africanas, isto é, desde um modo de vida, um fazer diferente ao imperante “way of life” ocidental. Vou me explicar com um pequeno exemplo: agora, o neoliberalismo com seu corolário do consumismo se expandiu por muitas partes do globo. O lema agora, como me dizia um professor, é “devo (ao banco, às grandes lojas...), então eu sou”. Contudo, mesmo que na África também haja práticas consumistas, até exageradas, continua havendo muitas práticas locais de solidariedade entre as pessoas e de poupança que não dependem do sistema bancário nacional ou internacional. A solidariedade não é só em termos de dinheiro ou de bens materiais, mas sobretudo a partilha de momentos importantes da vida (nascimento, luto pela morte de um ente querido, casamento etc.). A poupança, por outro lado, se faz em organizações rurais ou do bairro (“likilimba”, no caso da R. D. Congo, por exemplo). Essas práticas são, de alguma forma, um modo de vida que contrasta com o “way of life” ocidental.
Podem-me questionar e considerar que essas práticas têm mais a ver com o “atraso” que com Ubuntu, ou até mesmo que Ubuntu se relaciona mais com o “atrasado” que com a realidade “atual”. Minha resposta obviamente seria que não, por dois motivos principais: 1) o conceito mesmo do “atrasado” é eurocêntrico, isto é, vem das ideias “desenvolvimentistas” e lineares, onde a Europa — e os Estados Unidos — estão e estarão sempre na frente, isto é, são e serão sempre superiores e, por isso, suas culturas, seus modos de vida, suas visões do mundo devem ser seguidos por todo o mundo; 2) essas práticas são simultâneas, temporalmente falando, às práticas do neoliberalismo, e é dessa exterioridade precisamente, evocando o filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel , que haveria de implodir-se o sistema imperante.
IHU On-Line - Que perspectivas a ética Ubuntu é capaz de abrir frente a um mundo apoiado na lógica do consumo e da financeirização das relações e da vida?
Jean-Bosco Kakozi - Um dos postulados éticos de Ubuntu é “nenhum ser humano pode ser considerado absolutamente inútil”, e o outro é “ignora a vaca e salva o ser humano, porque a vida é maior que a riqueza”. Esses dois postulados mostram, como já disse anteriormente, o importante que é a vida, em geral, e a humana, em particular. Daí segue que a ética do Ubuntu, ou o Ubuntu como ética, é uma crítica contundente ao consumismo exacerbado e à superficialidade das relações humanas. Pois, o consumismo está fazendo justamente o contrário: ignora o ser humano para salvar a todo custo a “vaca”.
Dentro de um panorama assim (anti-Ubuntu), a vida mesma neste mundo está ameaçada. A harmonia está quebrantada porque, como aparece nas definições de Ubuntu, Ubuntu como humanidade não somente significa valores essenciais (solidariedade, generosidade...), mas também a abstração e a generalidade da realidade da qual dependemos e na qual somos. Assim, seguir antepondo a riqueza e/ou o consumo ao ser humano é continuar o caminho seguro até o afogamento coletivo dos seres humanos (o planeta terra não vai desaparecer, a espécie humana, sim). Ao contrário, os caminhos de Ubuntu e das diversas cosmovisões dos povos originários da “nossa América” contêm a insuspeita esperança de e para a libertação da vida e da nossa libertação.
IHU On-Line - Quais os desafios para as culturas ocidentais apreenderem perspectivas metafísicas como as do Ubuntu?
Jean-Bosco Kakozi - O primeiro desafio é aprender a ser humilde, isto é, não se considerar como Deus, e sim como ser humano. Se isto se aceita, o segundo desafio seria então convencer-se de que não há uma vida humana superior e outra inferior. Uma que vale mais, portanto, é digna de ser defendida, conservada e reproduzida, e outra que vale menos ou não vale nada é inútil, descartável e não digna de ser protegida nem reproduzida. O terceiro desafio que está relacionado com a “essência” mesma de Ubuntu é reconhecer que vivemos em uma “comunidade cósmica de vida”, onde há uma interdependência vital entre os seres humanos e outros seres. Reconhecer isto deve levar à tarefa impostergável de responder, isto é, fazer-se responsável pelos outros (humanos e não humanos), para humanizar-se e viver em harmonia, em paz.■
Leia mais…
- Metafísicas Africanas - Eu sou porque nós somos. Entrevista com Jean Bosco Kakozi Kashindi, publicada na revista IHU On-Line, número 477, de 16-11-2015.
- Ubuntu. 'Eu sou porque nos somos'. Revista IHU On-Line, número 353, de 06-12-2010.
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