segunda-feira, 15 de maio de 2017

Filosofia africana


Filọ́sọ́fi ti Áfríkà-ìwo iwájú.
Filosofia afroperspectivista.








Afroperspectividade: por uma filosofia que descoloniza.
                           
Entrevista com o doutor em filosofia e professor da UFRRJ, Renato Noguera

Por Tomaz Amorim Do Negro Belchior


Hoje iniciamos uma série de entrevistas com intelectuais e militantes da luta negra no Brasil. Nosso primeiro entrevistado é Renato Noguera, filósofo e professor da UFRRJ, que fala sobre o surgimento de uma tendência na filosofia brasileira chamada Afroperspectividade. Renato e outros pesquisadores tentam formular conceitos recorrendo às tradições indígena, africana e afro-brasileira. Se Nietzsche buscou inspiração nas figuras europeias clássicas de Apolo e Dionísio para suas formulações sobre a arte moderna, Renato Noguera e outros pesquisadores recorrem a figuras como a Mãe-de-santo e a conceitos como o de drible. O tripé referencial desta empreitada vem de Abdias do Nascimento, Viveiros de Castro e Molefi Asante. A proliferação conceitual de Deleuze dá o exemplo, segundo Renato, a ser superado. Nesta entrevista, falamos também sobre o conceito de epistemicídio (de Suely Carneiro), sobre as filosofias africanas – a anterior à grega e a contemporânea – e sobre como jovens negros em contextos violentos podem se descolonizar através da Filosofia. Renato ainda critica a ideia de mestiçagem e faz um balanço da aplicação das leis 10.639 e 11.645/08 que preveem o ensino de histórias e culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras em nossas escolas. Há um pensamento negro e crítico ganhando espaço nas universidades brasileiras. Renato Noguera e outros pesquisadores do Afroperspectividade são uma de suas frentes mais interessantes no campo filosófico.

“Numa sociedade racista que apresenta dados alarmantes de violência urbana em que as principais vítimas são jovens negras e negros, filosofar pode ajudar a repensar o cenário político e social. Mas, insisto, eles devem estudar uma Filosofia que seja marginal e antidogmática. Uma Filosofia que pense o racismo, uma Filosofia que trate da violência, uma Filosofia que pense o Brasil, uma Filosofia enredada no nosso território cultural, uma Filosofia que está porvir e que, talvez, possa estar em semente no pluriverso filosófico afroperspectivista.”

RN: Renato Noguera

TA: Tomaz Amorim (entrevistador)


TA: Renato, você é professor de Filosofia na UFRRJ. Como foi sua trajetória acadêmica, da escola até a posição de professor universitário? Por que a Filosofia?

RN: Em resumo, estudei no Colégio Pedro II e lá, fazendo orientação vocacional aos 13 anos, recebi como “diagnóstico” Filosofia ou Ciências Sociais. Depois pensei em estudar Medicina, Direito ou Letras, mas tinha em mim algumas questões que eram nitidamente filosóficas. Depois de ter ficado na lista de espera para Direito na UERJ, escolhi Filosofia na UFRJ. Eu me lembro que desde a infância vivia me perguntando pelo sentido da vida, ficava comparando o infinito do céu com a finitude humana. Enfim, dos 18 aos 21 anos fiz o bacharelado em Filosofia, aos 22 anos conclui a licenciatura e entrei no Mestrado em Filosofia na UERJ, sob orientação do professor Gerd Bornheim. Depois de dois semestres decidi mudar, prestei outra prova de seleção e acabei indo para a UFSCar, onde cursei o mestrado de 1996 a 29 de fevereiro 2000 (data de defesa da dissertação). No mestrado pude estudar sob orientação do grande Bento Prado Jr. Na época, o mestrado durava quatro anos, toda minha turma usou igualmente o prazo, nós fazíamos as disciplinas em três ou quatro semestres e ficávamos pesquisando e escrevendo pelo mesmo período. Depois do mestrado, voltei a morar no Rio de Janeiro e entrei no doutorado em 2001 na UFRJ, onde o defendi em 31 de março de 2006 com apoio do mesmo orientador da minha monografia, o generoso Mário Guerreiro. Eu estudei a Filosofia de Schopenhauer e participei da fundação do Grupo de Trabalho (GT) Schopenhauer na Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) em 2004. Na tese de doutorado, articulei as Filosofias de Platão, Schopenhauer e Deleuze para propor uma alternativa schopenhaueriana para uma formulação feita por Platão. A Filosofia de Deleuze trouxe a estratégia de criação de conceitos.  Durante 11 anos fui professor da Educação Básica, trabalhei no Ensino Fundamental, no Ensino Médio e no Ensino Superior, paralelamente, dei aula em várias escolas privadas, tais como a Escola Parque. Trabalhei na Universidade Estácio de Sá, fui professor substituto da UERJ, da UFRJ e da rede pública estadual fluminense.  Entre 2005 e 2006 cheguei a ter 27 turmas por semana. No ano de 2008 fui aprovado em concurso público para a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

TA: Da graduação ao doutorado você se dedicou ao estudo da obra de Schopenhauer, um dos mais importantes filósofos de língua alemã do século XIX. Hoje você é conhecido, principalmente, pelo esforço em produzir uma Filosofia a partir de temas e pensadores africanos. Nesta transição, você acha que houve um rompimento entre os temas ou há uma continuidade na sua produção?

RN: Não sei se foi um rompimento. Eu estudei Schopenhauer por bastante tempo, praticamente de 1991 até 2006, mas, paralelamente, tive outra formação. Tive o privilégio de ter uma formação familiar e política que levou-me para o ativismo negro desde cedo. Por isso, eu estudava, paralelamente, o pensamento africano. Eu sabia que nos anos 1990 e no início dos 2000 seria difícil colocar esse assunto no mundo acadêmico filosófico. O professor Mário Guerreiro me disse sabiamente: termine o doutorado e você poderá pesquisar isso. Foi o que fiz.


TA: Você reivindica uma origem africana à Filosofia, que teria vindo do Egito para a Grécia. Quais são os indícios históricos desta afirmação? Quem quiser se aprofundar nesta questão deve buscar quais referências?

RN: Eu trabalho com a noção de que a Filosofia é pluriversal; não faço coro com a leitura hegemônica de que filosofar seja universal e tenha sido uma invenção grega. Neste sentido, não reivindico que os africanos inventaram a Filosofia. Eu advogo que o Egito, desde 2780 antes da Era Comum, tem uma produção filosófica e possuía escolas de rekhet, termo que, segundo o egiptólogo e filósofo Theóphile Obenga, significa “Filosofia”. Não há dúvida de que Platão, Pitágoras e Tales de Mileto, dentre outros gregos, passaram algum tempo no Antigo Egito. Diversas fontes convergem para a tese de que Pitágoras (570-496 A.E.C) foi o primeiro a usar o termo “Filosofia” depois de retornar do Egito. Diógenes de Laércio e Cícero são fontes importantes dessa perspectiva bastante conhecida. Há um discurso crítico que atribuiria aos gregos uma espécie de plágio da Filosofia egípcia. Eu não defendo isso, tampouco a ausência de influência. É óbvio que todas as culturas são dinâmicas. Eu não defendo que os egípcios inventaram a Filosofia, o que eu digo é mais simples: os textos egípcios são filosóficos e mais antigos do que os gregos. Ou seja, os registros filosóficos africanos são anteriores aos ocidentais. Não estou preocupado com primazia, mas com a legitimidade filosófica africana na Antiguidade. Eu sou contra a recusa desse material por puro dogmatismo, por uma postura que, não encontro outra palavra, tem sido profundamente antifilosófica por parte de colegas com boa formação na área. Eu não digo que os africanos inventaram a Filosofia por dois motivos. Primeiro: amanhã ou depois podemos encontrar algum texto mais antigo do que os egípcios com cerca de mais de 2500 anos antes da Era Comum, isto é, de aproximadamente 4500 anos. Segundo: penso que é um falso problema apontar qual povo inventou a Filosofia, qual povo lavrou sua certidão de nascimento. Seria o mesmo que procurar o povo que inventou a Arquitetura. Penso que todos os povos tinham suas próprias construções. Faz mais sentido apontar as diferenças. Assim, o que soa estranho é reduzir toda diversidade a apenas uma escola. Eu tenho pensado desse modo. As nossas pesquisas são baseadas em diversas fontes, ainda pouco examinadas, que confirmam que os textos africanos são anteriores aos ocidentais. Os egípcios começaram a filosofar antes dos gregos. Além disso, há o fato de que o Egito antigo era uma sociedade negra, o que foi, conforme Martin Bernal e Cheikh Anta Diop, falsificado por conta do racismo antinegro que não aceitaria facilmente que uma sociedade muito avançada tecnologicamente naquele momento histórico pudesse ser negra. Ainda hoje encontramos representações brancas do Antigo Egito. Sem dúvida, minhas afirmações em torno da ideia de que existia uma produção filosófica anterior aos gregos recebe uma vasta série de objeções. O elenco é vasto. Mas para aprofundar o debate eu sempre indico o exame dos trabalhos de George James com Legado roubado (Stolen Legacy), passando pelas obras de Cheikh Diop, Theóphile Obenga, Molefi Asante, até A Filosofia antes dos gregos, de José Nunes Carreira.

TA: A Filosofia trabalhou durante muitos séculos com a ideia de universal. No século XX, principalmente, surgiram as Filosofias da diferença e uma produção teórica impulsionada por grupos historicamente oprimidos e por suas questões e reivindicações. É possível entender estas formulações específicas sob o pano de fundo do universal ou elas estariam justamente denunciando a falsidade deste universal?

RN: Penso que as Filosofias da diferença são muito importantes nessa denúncia, mas concordo com o filósofo porto-riquenho Maldonado-Torres que diz que: “os filósofos e os professores de Filosofia tendem a afirmar as suas raízes numa região espiritual invariavelmente descrita em termos geopolíticos: a Europa”. Apesar da enorme compreensão, percebo ainda uma perspectiva, por assim dizer, “conservadora”. O que não significa que eu não dialogue muito com essa abordagem, reconhecendo os seus limites.


TA: Qual a importância da Filosofia produzida hoje no continente africano? Qual sua relação com o pensamento africano na diáspora?

RN: Existem muitos expoentes na Filosofia africana contemporânea, posso citar alguns. Achille Mbembe tem uma obra muito interessante chamadaCrítica da razão negra, um belo trabalho de Filosofia política em que ele problematiza o conceito de “negro” e apresenta um risco trazido pelo neoliberalismo e pela crise da Europa como centro político mundial. Mbembe diz algo como “os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas”. O trabalho do filósofo sul-africano Mogobe Ramose questiona o conceito de universalidade, substituindo-o pelo de pluriversalidade. Ramose explica como os conflitos geopolíticos entre europeus e africanos foram responsáveis pela invisibilidade sistemática do pensamento filosófico africano. Ora, esse problema tem sido debatido no contexto da afrodiáspora de diversos modos. O filósofo afro-americano Charles Mills disse algo muito interessante, mais ou menos assim, “nas Ciências Humanas, a Filosofia é a área mais branca”. No Brasil, Sueli Carneiro trouxe a ideia de epistemicídio. É preciso citar outros nomes que têm pesquisado o assunto como Wanderson Flor Nascimento da Universidade de Brasília (UnB), Eduardo David Oliveira da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Emanoel Soares da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), além de estudantes de Programas de Pós-Graduação no Paraná como Roberto Jardim e Thiago Dantas, que lançou o livro Descolonização Curricular: A Filosofia Africana no Ensino Médio (2015). No Rio de Janeiro, um grupo de estudantes de pós-graduação, professores da educação básica e um professor da UERJ construíram um projeto que transformou-se no livroSambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba (2015), organizado por Wallace Lopes com participação de Marcelo Rangel, professor da Universidade Federal de Outro Preto (UFOP), Sylvia Arcuri, Eduardo Barbosa, Felipe Siqueira, Filipi Gradim, Guilherme Celestino e Marcelo Moraes, professor da UERJ. Esse grupo tem feito um belo trabalho filosofando através do samba e usando o repertório cultural negro, africano, afro-brasileiro, ameríndio e indígena.

TA: A tradição oral parece fundamental nas diversas culturas africanas. Quais os desafios em transportar esta tradição para a narrativa e Filosofia escritas?

RN: O pluriverso cultural africano é vasto. Conforme afirma Diop, existe algo em comum entre os povos africanos do mesmo modo que nas culturas ocidentais pode-se identificar alguns elementos razoavelmente constantes. Penso que existe muito desconhecimento sobre os povos africanos. O livroEtno-História do Império Mali de José Lampréia pode se juntar ao arsenal de trabalhos organizados pelo historiador africano Joseph Kizerbo e de tradicionalistas como Hampâte Bá para elucidar que existiam sociedades como o Império Mali, entre os séculos VIII e XVII. A historiografia africana aponta que no século XIV existiam 150 escolas e uma universidade na cidade de Tombuctu, com um vasto acervo em suas bibliotecas. Abdel Kader Haidara tem feito um belo trabalho tentando salvar a vasta documentação que grupos fundamentalistas querem destruir. Ora, faço esse comentário para explicar que existem registros escritos e orais no continente africano. Eu percebo que pouco se fala a respeito do material escrito dos séculos XIV, XV e XVI. Sem contar o vasto material egípcio de 2780 até 330 antes da Era Comum, conforme catalogado por Théophile Obenga. Afinal, mesmo diante das tentativas de falsificação histórica, o Egito Antigo não pode ser embranquecido diante de todas as evidências que Cheikh Anta Diop nos deixou em seus trabalhos. Faço essa digressão para mostrar que, além de material oral, existe muito material escrito que, no entanto, é pouquíssimo conhecido. Pois bem, em relação ao esforço de transpor o “texto” oral para o registro escrito, penso que a oralitura resolve esse aparente problema, transformando o que parecia um obstáculo intransponível numa equação solúvel, desde que os devidos protocolos sejam usados. Pio Zirimu, um incrível linguista ugandense, e uma dupla nascida no Quênia, o escritor e professor de literatura comparada Ngũgĩ Wa Thiong’o e a professora de arte Micere Mugo, explicam que a oralitura é a teoria da composição oral, um modo de catalogar o repertório de registros orais. Não se trata de oralidade, mas de “técnicas” do campo da linguística que criam um acervo oral. Ou seja, a tradição oral pode ser preservada através dessa abordagem. Vale a pena ler o artigo Oralidad y oratura de Juan José Ferrer a esse respeito para compreender melhor o tema. A oralitura é a alternativa para que o conhecimento filosófico antigo registrado oralmente possa ser acessível do mesmo modo que os registros escritos.

TA: Em 2003 foi implantada a lei 10.639, que prevê o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras nas escolas. Por que o estado brasileiro demorou tanto para incluir a história dos ancestrais de mais da metade da população brasileira nas escolas? Passados doze anos, quais foram os avanços da lei e de sua implantação? O que ainda falta? Quais as possibilidades de implantação da lei na disciplina de Filosofia?


RN: Esse tema é objeto de muitas pesquisas. A Lei 10.639/03 recebeu em 2008 o acréscimo da Lei 11.645/08 que inclui o ensino de história e culturas indígenas. A regulamentação da alteração do Artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tem pelo menos três documentos fundamentais: 1º) Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana de 2004; 2º) Orientação e Ação para Educação das Relações Étnico-Raciais de 2006; 3º) Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígenas de 2008. Existem muitos trabalhos que trazem um belo panorama a respeito do cenário de implementação dos conteúdos obrigatórios africanos, afro-brasileiros e indígenas no currículo do ensino fundamental e do ensino médio em todas as disciplinas. Um bom balanço tem sido feito pelos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabis) que integram oficialmente as Instituições Federais de Ensino (IFES), além de existirem também em diversas universidades privadas e públicas. É difícil discorrer sobre isso sem fazer uma monografia. De qualquer modo, existem avanços e resistências. No caso da disciplina Filosofia, posso fazer um resumo porque tenho dedicado parte de meu tempo de pesquisa em investigações a esse respeito, incluindo a pesquisa que coordeno com apoio da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) intitulada Filosofando com sotaques africanos e indígenas, na primeira versão no período de julho de 2014 até junho de 2016. A maior dificuldade no campo da Filosofia está no desconhecimento da produção fora do circuito ocidental. Eu acredito que o livro Ensino de Filosofia e a lei 10.639 que foi publicado pela Pallas em parceria com a Biblioteca Nacional pode ajudar bastante a dirimir dúvidas. Penso que o primeiro passo é uma cuidadosa leitura da documentação que regulamenta o Artigo 26 A da LDB. O segundo passo: descolonização do pensamento, do currículo e das práticas educativas.

TA: Em uma entrevista recente à revista Ensaios Filosóficos você falou em “racismo epistemológico”. O que é isto e como vencê-lo?

RN: O racismo epistêmico ou epistemológico é uma das dimensões mais perniciosas da discriminação étnico-racial negativa. Em linhas gerais, significa a recusa em reconhecer que a produção de conhecimento de algumas pessoas seja válida por duas razões: 1º) Porque não são brancas; 2º) Porque as pesquisas e resultados da produção de conhecimento envolvem repertório e cânones que não são ocidentais. Penso que a disputa para derrotar, ainda que parcialmente, o racismo epistemológico está no esforço por diversificar as leituras. Combater a injustiça cognitiva começa por deixarmos de privilegiar os modelos epistemológicos ocidentais. E, por fim, realizar uma comparação dos modelos de conhecimento, do repertório, criando condições para a polirracionalidade. Minha base para romper com o racismo epistêmico está nas leituras do filósofo Dismas Masolo. É preciso analisar o objeto de conhecimento por ângulos diferentes, mas também por meio de modelos de racionalidade diversos. Isto certamente servirá para enriquecer nosso acervo cognitivo.


TA: A Universidade Federal do Maranhão acabou de anunciar a criação de um curso de graduação em “Estudos Africanos e Afro-Brasileiros”. NEABs, Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, têm sido criados em diversas universidades em todo o Brasil. O surgimento destes espaços mostra o começo de uma mudança na presença negra nas universidades?

RN: Sem dúvida. Penso que temos um processo de franca expansão da produção e ocupação acadêmica. O que também pode ser percebido através das reações de grupos mais reacionários que não querem negociar o espaço público de produção de conhecimento.


TA: Os movimentos negros no Brasil têm reivindicado o conceito de genocídio para descrever o número alarmante de negras e negros que perdem a vida no Brasil por conta de ações diretas do estado ou por sua negligência (aborto mal realizado, assassinato pela polícia ou em guerra de facções, vício em drogas, má alimentação, ausência de serviços púbicos de saúde, etc.). A filósofa Sueli Carneiro desenvolve o conceito de epistemicídio, que seria o extermínio constante do conhecimento de povos não-brancos produzidos através da história e ainda hoje. Você acha que há uma relação entre estes dois tipos de extermínio?

RN: Sem dúvida. O que está em jogo não deixa de ser uma disputa pela versão única da História, da Filosofia, dos modelos e práticas políticas frente à diversidade de perspectivas. A denúncia feita por Sueli Carneiro é magistral, considero o seu trabalho uma das referências mais importantes da área no Brasil. Por exemplo, quando falamos em culinária as pesquisas apontam que a atividade de cozinhar é um território feminino. Em certa medida, na esfera privada no Brasil as mulheres cozinham mais do que os homens. No Brasil escravocrata, as mulheres negras escravizadas protagonizaram os serviços culinários. Mas a alta gastronomia e o papel de chef de cozinha parece ter um elenco majoritariamente branco e masculino. Tudo isso está relacionado ao epistemicídio, ao genocídio. A performance na área da gastronomia inclui a filiação étnico-racial. Os dados e o ranking de melhores chefs mostra que o gênero é masculino, a cor/raça é branca e o sotaque francês. Óbvio que não estou dizendo que homens brancos não podem ser chefs maravilhosos. O que o exemplo mostra é que o epistemicídio dificulta a “escuta” do discurso gastronômico das mulheres negras, já que os homens brancos são naturalmente mais empoderados na disputa.


TA: Você propõe uma Filosofia afroperspectivista. O que é isto? Quais as origens teóricas e políticas deste conceito? Existem outros pensadores hoje no Brasil e no mundo dedicados ao seu desenvolvimento? Quais são até agora seus principais trabalhos?

RN: Por Filosofia afroperspectivista ou Afroperspectividade defino uma linha ou abordagem filosófica pluralista que reconhece a existência de várias perspectivas, sua base é demarcada por repertórios africanos, afrodiaspóricos, indígenas e ameríndios. O que denominamos de Filosofia afroperspectivista é uma maneira de abordar as questões que passa por três referências: 1ª) Afrocentricidade; 2ª) Perspectivismo ameríndio; 3ª) Quilombismo. Alguns aspectos da formulação intelectual feita por Molefi Asante articuladas com certas questões suscitadas pela etnologia amazônica de Eduardo Viveiros de Castro com a formulação política do quilombismo de Abdias do Nascimento são as fontes para a Filosofia afroperspectivista. Vou repetir o que escrevi no capítulo Sambando para não sambar: afroperspectivas filosóficas sobra a musicidade do samba e a origem da Filosofia. A Filosofia afroperspectivista reúne alguns dos seguintes elementos:

 1. Afroperspectividade define a Filosofia como uma coreografia do pensamento.

2. A Filosofia afroperspectivista define o pensamento como movimento de ideias corporificadas, porque só é possível pensar através do corpo. Este, por sua vez, usa drible e coreografia como elementos que produzem conceitos e argumentam.


3. Os conceitos afroperspectivistas são construídos a partir de movimentos de coreografia de personagens conceituais melanodérmicos. Neste sentido, os conceitos são escritos com os pés, com as mãos e com cabeça ao mesmo tempo.


4. A Filosofia afroperspectivista define a comunidade/sociedade nos termos da cosmopolítica bantu: comunidade é formada pelas pessoas que estão presentes (vivas), pelas que estão para nascer (gerações futuras/futuridade) e pelas que já morreram (ancestrais/ancestralidade).


5. A Filosofia afroperspectivista é policêntrica, percebe, identifica e defende a existência de várias centricidades e de muitas perspectivas.


6. A Filosofia afroperspectivista não toma o prefixo “afro” somente como uma qualidade continental; estamos diante de um quesito existencial, político, estético e que nada tem de essencialista ou metafísico.


7. A Filosofia afroperspectivista usa a roda como método, um modelo de inspiração das rodas de samba, candomblé, jongo e capoeira que serve para colocar as mais variadas perspectivas na roda antes de uma alternativa ser alcançada. A roda é uma metodologia afroperspectivista.


8. Afroperspectividade é devedora da Filosofia ubuntu de Mogobe Ramose.


9. Afroperspectividade define competição como cooperação, isto é, competir [significa petere (esforçar-se, buscar) cum (juntos)], localizar alternativas que são as melhores num dado contexto, mas, não são únicas, tampouco permanentes e devem atender toda a comunidade.


10. Afroperspectividade é devedora do Nguzo Saba formulado por Maulana Karenga, isto é, se baseia nos sete princípios éticos que ajudam a organizar e orientar a vida. A saber: Umoja (unidade): empenhar-se pela comunidade; Kujichagulia (autodeterminação): definir a nós mesmos e falar por nós; Ujima (trabalho e responsabilidade coletivos): construir e unir a comunidade, perceber como nossos os problemas dos outros e resolvê-los em conjunto; Ujamaa (economia cooperativa): interdependência financeira, recursos compartilhados; Nia (propósito): transformar em vocação coletiva a construção e o desenvolvimento da comunidade de modo harmônico; Kuumba (criatividade): trabalhar para que a comunidade se torne mais bela do que quando foi herdada; Irani (fé): acreditar em nossas(os) mestres.



11. Afroperspectividade é devedora das reflexões e inflexões filosóficas de Sobonfu Somé, definindo o amor como um projeto espiritual e comunitário que serve para manter a sanidade individual e deve contar com o apoio de uma comunidade para ser preservado.


12. Afroperspectividade define o tempo dentro do itan [verso]iorubá que diz: “Bara matou um pássaro ontem com a pedra que arremessou hoje”. O tempo não é evolutivo, tampouco se contrai ou pode ser tomado como um círculo ou uma linha reta; mas, de modo simples, diz que o passado é definido pelo presente e o futuro é um conjunto de encruzilhadas, isto é, destinos (odu).



13. Afroperspectividade permanece em aberto, sempre apta a incluir perspectivas que usem o conceito de odara como crivo de validade de um argumento, entendendo odara como bom, na língua ioruba, uma espécie de bálsamo de revitalização existencial.


Em relação às pessoas que filosofam com algum sotaque afroperspectivista, posso dizer que estão reunidas em Sambo, logo penso. Eu não quero falar por ninguém, nem sou representante especial dessa abordagem filosófica, penso que sou, apenas, academicamente mais antigo do que o resto do grupo. No livro Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba(2015) organizado por Wallace Lopes, numa coordenação conjunta que fiz com Sylvia Arcuri e Marcelo Moraes, estão reunidas as pessoas que fazem esse exercício afroperspectivista de modo formal ou informal, Marcelo Rangel, Eduardo Barbosa, Felipe Siqueira, Filipi Gradim, Guilherme Celestino. No projeto Filosofando com sotaques africanos e indígenas, tenho algumas parcerias: o Prof. Rogério Seixas da Universidade de Barra Mansa, Filipe Ceppas da UFRJ, Wanderson Nascimento da UFBA e Wanderely Silva da UFRRJ, estes são colegas que mesmo não se professando afroperspectivamente apoiam e são pesquisadores associados do projeto. Em relação às principais obras: penso que estão porvir, mas Ensino de Filosofia e a Lei 10. 639 (2014)foi o primeiro livro em que confessei esse desejo intelectual de filosofar com sotaques africanos, indígenas, performances femininas, sambando, jogando bola, com carimbó e com um repertório suburbano, enfim, lançando mão das minhas referências culturais.

TA: Qual o papel das mulheres na produção negra de conhecimento no cenário brasileiro? A figura da negra ainda se resume ao papel tradicional de mãe ou a Filosofia afroperspectivista aponta outros espaços possíveis para ela?

RN: Grande interrogação. Penso que o lugar das mulheres só pode ser de protagonismo. Atualmente tenho orientado mulheres em cursos de pós-graduação e buscado apoiar suas iniciativas. Na Filosofia afroperspectivista, estamos cada vez mais pensando em amplificar e fazer circular com mais intensidade as performances femininas. Por exemplo, em um artigo sobre a genealogia do drible mencionei personagens conceituais melanodérmicas da Filosofia afroperspectivista. Nós estamos investindo em estudos a respeito da personagem da Pomba-Gira, por exemplo. Além disso, a pensadora burquinense Sobonfu Somé é uma das nossas maiores referências quando se trata de falar de relacionamentos afetivos e conjugalidades.
TA: A mãe de santo, o jongueiro, o vagabundo, orixás, ubuntu, denegrir, vadiagem, drible, mandinga, enegrecimento, roda, cabeça feita, corpo fechado, estas são algumas imagens e figuras ligadas ao universo negro que você transforma em conceitos filosóficos. No conceito de drible, por exemplo, você faz um interessante resgate histórico do drible no futebol e busca aplicá-lo à tradição acadêmica europeia, exigindo que o pensamento pense também com o corpo. Traduzir tipos históricos e imagens tradicionais em conceitos filosóficos é o procedimento principal da Filosofia afroperspectivista?

RN: É um dos procedimentos. Um dos modos de atuar é trazer o nosso repertório cultural. A maioria das pessoas que usam a afroperspectividade tem sólida formação nas rodas de samba, nos terreiros de candomblé e umbanda, pajelança, xamanismo, nas rodas de capoeira, algumas são jogadoras de futebol e/ou estudiosas de esquemas táticos. Nesse sentido, se o filósofo alemão Adorno usou Ulisses para fazer uma leitura da Modernidade, se Nietzsche falou de Apolo e Dioniso, nós usamos outras personagens: Exu, Pomba-Gira, Zé Malandro, Zumbi dos Palmares, Ogum, Oxóssi, Tupi, Iara, dentre outras.


TA: O filósofo francês Gilles Deleuze é uma referência importante nos seus escritos. É possível trabalhar com escritores europeus em uma Filosofia afroperspectivista? Há limites e dificuldades nesta relação?

RN: A resposta é sim para os dois casos. Ou seja, apesar de ser viável trabalhar com autores europeus, existem limites. Isto está explícito em uma defesa que o próprio Deleuze faz ao lado do psicanalista Félix Guattari em O que é Filosofia?: “Se a Filosofia tem uma origem grega, como é certo dizê-lo, é porque a cidade, ao contrário dos impérios ou dos estados, inventa o agôn como regra de uma sociedade de ‘amigos’, a comunidade dos homens livres enquanto rivais (cidadãos)”. Por isso, ainda que Deleuze seja muito importante para os meus escritos, reconheço limites sérios. Como eu digo sempre, na esteira do filósofo Maldonado-Torres, os filósofos europeus têm essa mania colonial. Sem dúvida, Deleuze é um dos filósofos que mais tem nos ajudado em nossas insurreições. Mas como desejamos criar aldeias e quilombos filosóficos, Deleuze só ajuda a destruir os velhos castelos ocidentais da Filosofia. Para construir a aldeia quilombista precisamos de pessoas que filosofam com samba.


TA: Qual o papel da mestiçagem, ideia fundamental na história da formação racial brasileira, no seu pensamento?

RN: Eu não reivindico a categoria de mestiçagem em nenhum momento. Não se trata de uma dificuldade, mas de um termo muito equívoco, uma ideia que traz mais dificuldades e confusões do que alternativas políticas. Eu identifico um grave problema. O termo “raça” pode ser usado com vários sentidos, destaco dois: sinônimo de espécie ou alusão ao caráter social e histórico que diferencia grupos humanos pelo fenótipo. Ora, os sentidos são trocados e como diz o ditado “não se deve confundir alhos com bugalhos”. Tecnicamente, uma pessoa com mãe austríaca branca e pai norueguês branco é tão mestiça quanto alguém que tem um pai nigeriano da etnia iorubá com uma mãe sueca de pele alva. Minha leitura percebe que o conceito mestiço só faria pleno sentido em casos de centauros, uma mistura de humanos com cavalos, ou ainda, se um ser extraterrestre procriasse com uma pessoa da nossa espécie. Dessa união (extraterrestre com terrestre) nasceria um ser mestiço. Minha experiência política e meus investimentos intelectuais trazem um pensamento diferente desse. Nós somos da mesma raça (no sentido de espécie biológica), mas isso não quer dizer que não exista raça num sentido social e histórico, ou seja, populações que podem ser diferenciadas por características étnico-raciais, isto é, pelo fenótipo. Mas a existência de mestiços pressuporia diferenças de natureza entre as “raças”, o que não é o caso. Eu exemplifico, os jogadores de futebol Daniel Alves e Kaká são “igualmente” mestiços. Porque provavelmente ambos têm pessoas brancas, negras (pretas e pardas) e indígenas em suas ancestralidades. Mas foi Daniel Alves que reclamou dos xingamentos de torcidas que além de jogar bananas, o chamaram de macaco diversas vezes. Conforme minhas pesquisas superficiais, Kaká nunca foi chamado de “macaco” quando jogava na Europa. Ora, Kaká é branco e Daniel Alves é pardo, isto é, negro. (O sistema classificatório étnico-racial brasileiro é bem simples: o IBGE informa cinco categorias de cor/raça: amarela, branca, indígena, parda e preta. É importante notar que a categoria negra não é sinônimo de preta, mas a soma desta com “parda”. Ou seja, pardos + pretos = negros). Por isso, Neymar viveu alguns episódios de discriminação racial em campo, algo impensado para Zico ou Kaká na mesma Europa. Penso que a ideia de mestiçagem cria mais dificuldades e confusões do que efetivas alternativas ao racismo e para a compreensão da sociedade brasileira. A suposição da existência da “mestiçagem” tem sido munição para as teorias puristas. Afinal, para haver mestiços é preciso que existam puros. Supor a mestiçagem parece uma crítica de tom antirracista, mas acaba por revitalizar o racismo que “gostaria” de combater. A ideia de pureza fez e continua fazendo muitos estragos políticos, penso que devemos riscar a ideia de “mestiçagem” dos nossos dicionários político e intelectual, levando a ideia de “pureza” junto. Afinal, não existem puros, tampouco impuros ou misturados. Concordo com Carlos Moore, só existem fenótipos. Por isso, a mestiçagem não faz parte do meu trabalho. Não acredito e nem vejo como a “mestiçagem” poderia ajudar a resolver qualquer tensão racial.

TA: Por fim, Renato. Em um contexto de opressão e violência, como é o de muitos jovens negras e negros no Brasil, por que eles deveriam estudar Filosofia ?

RN: A Filosofia pode ser um exercício de descolonização. Mas também pode ser de colonização e recolonização. Nós defendemos uma Filosofia que descoloniza, uma Filosofia que declare independência e autonomia sem dogmas. Numa sociedade racista que apresenta dados alarmantes de violência urbana em que as principais vítimas são jovens negras e negros, filosofar pode ajudar a repensar o cenário político e social. Mas, insisto, eles devem estudar uma Filosofia que seja marginal e antidogmática. Uma Filosofia que pense o racismo, uma Filosofia que trate da violência, uma Filosofia que pense o Brasil, uma Filosofia enredada no nosso território cultural, uma Filosofia que está porvir e que, talvez, possa estar em semente no pluriverso filosófico afroperspectivista.


TA: Muito obrigado pela entrevista, Renato.


Fonte: http://www.geledes.org.br/afroperspectividade-por-uma-filosofia-que-descoloniza/#gs.nV2jkIA


Filosofia africana



 Filọ́sọ́fi ti Áfríkà (filosofia africana)



Ubuntu: filosofia africana confronta poder autodestrutivo do pensamento ocidental, avalia filósofo





Ricardo Machado | IHU | São Leopoldo (RS) - 13/11/2015 - 10h40

Filósofo congolês Jean Bosco Kakozi Kashindi fala sobre princípio do 'eu sou porque nós somos' e comenta como filosofia africana oferece elementos para pensar realidade latino-americana: 'é momento de considerar outras racionalidades'

“Com o Ubuntu operou-se a mudança da concepção da identidade a partir do ‘eu sou porque tu não és’ (concepção excludente) para o ‘eu sou porque nós somos, e dado que somos então eu sou’ (concepção includente)”. Desta maneira objetiva, mas contundente, Jean Bosco Kakozi Kashindi demonstra um dos principais deslocamentos teóricos e práticos da racionalidade do continente africano em relação ao olhar ocidental hegemônico.

Em entrevista, ele explica que a filosofia africana oferece elementos para pensar, também, a realidade latino-americana e caribenha. “Eu estimo que nessas culturas — dominadas, exploradas e marginalizadas — existe um potencial enorme para pensar, a partir de outras racionalidades, a realidade latino-americana e caribenha, e, dessa maneira, dar uma nova seiva aos processos de transformação ou de mudança que ocorreram na região”, propõe.

Ao explicar tal mudança de concepção ontológica, o entrevistado apresenta os três postulados éticos que emergem. “Primeiro, todas as pessoas são valiosas em si mesmas, motivo pelo qual ninguém pode ser considerado como inútil na sociedade; segundo, se todas as pessoas são valiosas em si mesmas, segue-se que são sujeitos, isto é, agentes que podem e devem incidir na sociedade na qual vivem; terceiro, no horizonte do Ubuntu, os sujeitos são como tais pela relação intrínseca e imprescindível que têm com os outros lato sensu, daí a intersubjetividade inerente e constitutiva das pessoas”, explica.

Jean Bosco Kakozi Kashindi é natural da República do Congo, onde se graduou em Filosofia e Ciência Humanas. Especializou-se em Religião, no Centre de Formation Missionnaire Notre Dame d’Afrique, na cidade de Bukavu (República Democrática do Congo). Realizou mestrado em Estudos Latino-americanos pela Universidade Nacional Autônoma do México – UNAM. Atualmente é doutorando em Filosofia e Ciências Humanas na cidade de Bukavu. Sua pesquisa é referente ao Ubuntu na África do Sul (Joanesburgo) na Universidade de Witwatersrand.

Jean Bosco Kakozi Kashindi esteve na Unisinos em 2014 apresentando a conferência La vivencia de Ubuntu y la descolonización africana. Caso de Saudáfrica, durante o evento Conversações Interculturais no Sul Global – Descolonização, Direito e Política em debate promovido pelo PPG do Direito da Unisinos em parceria com o IHU (Instituto Humanitas Unisinos).

Confira a entrevista:

IHU On-Line: De que trata exatamente a Filosofia africana bantu e como ela explica uma condição de existência no sul Global?



Jean Bosco Kakozi Kashindi: A filosofia africana bantu[1] é um pensamento que me atreveria a chamar de crítico, que nasceu quase no final da primeira metade do século passado, e que tinha como principal incumbência negar os pressupostos hegelianos amplamente difundidos no ocidente, de que os homens e as mulheres que viviam no sul do Saara não tinham nenhum sistema filosófico e, pior ainda, não seriam capazes de filosofar. Foi o missionário franciscano belga Placide Tempels[2] quem, paradoxalmente, inaugurou oficialmente essa crítica. Em seu livro — já imprescindível nesse campo – La Philosophie bantoue (Paris: Présence Africaine, 1945), publicado primeiro em holandês, em 1944, e traduzido, um ano mais tarde, para o francês, demonstrou metódica e comparativamente que os bantu[3] tinham uma filosofia como os europeus, mas diferente.

Baseando-se em sua experiência de campo como missionário católico (viveu 28 anos no antigo Congo Belga, hoje República Democrática do Congo, na região dos baluba, no centro e sudeste deste país), pôde demonstrar que os bantu tinham uma ontologia, uma metafísica, uma epistemologia, uma psicologia, uma ética e uma religião baseadas na concepção do ser como força. Esta concorre sempre para procurar a vida. Tempels observou que os bantu se relacionavam com outros seres, animados ou inanimados, com vistas a fortalecer sua vida ou diminuir a força vital de um inimigo. Isto quer dizer que a ontologia bantu dista da ontologia clássica ocidental, que considera o ser enquanto ser. Para os bantu, o ser é força, ou melhor dito, é força vital, porque existe uma relação intrínseca entre “força” e “vida”[4]. Desde esta ótica, o ser é sempre concretamente dinâmico; expressa-se como força, a mesma que é a exteriorização da energia e, por conseguinte, está sempre em relação ativa com a vida para aumentá-la e, às vezes, diminuí-la.
Esta foi a principal crítica de Tempels, sobre a qual fundamentou todo o edifício da filosofia africana bantu. Após o trabalho do missionário belga, houve críticas a favor ou contra que foram situadas em diferentes correntes da filosofia africana: a corrente ontológica, chamada também de “etnofilosofia”; a refutação do “tempelsianismo”(Fabien Eboussi-Boulaga[5]), a destruição da “etnofilosofia” (Marcien Towa[6] e Paulin Hountondji[7]); Crítica da crítica da “etnofilosofia”, entre outras[8]. Embora estas correntes tenham aberto o fazer filosófico africano, foi o trabalho pioneiro de Tempels que influenciou e propulsou todos os trabalhos posteriores.
Em suma, a filosofia africana bantu foi uma reflexão crítica reivindicativa de um tributo eminentemente humano que é a razão. Se os africanos têm uma ontologia diferente, uma ética diferente, metafísica… infere-se que possuem uma racionalidade diferente da ocidental.

Pois bem, reivindicar uma racionalidade diferente, isto é, uma cosmovisão diferente, uma maneira diferente de ver o mundo e de viver nele, é assumir-se simplesmente como humano e, por conseguinte, posicionar-se na existência. Atualmente, reivindicar sua humanidade como africano — como o que fez o ex-presidente sul-africano Thabo Mbeki[9], em seu discurso de 8 de maio de 1996, na adoção da nova Constituição da África do Sul, quando começou dizendo “I am African (Eu sou africano)” — é ter consciência da posição que se ocupa no mundo. Esta não pode ser outra senão a marginalização, a exploração e a dominação. Então, o simples fato de sentir a necessidade de gritar aos quatro ventos que os africanos pensam, que têm uma racionalidade..., é denunciar implícita e explicitamente a condição de existência da maioria dos africanos, a mesma que estes últimos compartilham proporcionalmente com outros habitantes do Sul Global.

IHU On-Line: De que forma a perspectiva filosófica africana bantu torna-se uma ferramenta produtiva para pensar a realidade latino-americana e caribenha?

Jean Bosco Kakozi Kashindi: Na minha maneira de ver as coisas, a filosofia africana é irmã da filosofia latino-americana e caribenha, porque ambas nascem do desejo da emancipação da “tutela” ou dominação ocidental; em ambas há uma preocupação com a busca do próprio, das identidades locais. Vendo-o desta perspectiva, a filosofia africana não apenas pode ser uma ferramenta produtiva para pensar e transformar a realidade latino-americana e caribenha, mas também pode aprender muito desta última.
Tanto a África como a América Latina foram colonizadas por países da Europa ocidental, mas essa colonização foi um pouco diferente: na América Latina, antes da colonização, houve a conquista; os europeus chegaram com a intenção de não apenas enriquecer as metrópoles, mas de fixar-se no “novo mundo”. Daí os topônimos como “Nova Espanha”, “Nova Inglaterra”, “Nova York”, “Nova Galícia”, “Nova Granada”, etc. A África, ao contrário, não foi conquistada no sentido próprio do termo, mas simplesmente colonizada; e foram raros os topônimos tipo “novo este”, “novo aquele”. Em termos gerais, os europeus não tinham muito interesse em se fixar definitivamente na África (esta não era “nova” para eles), mas explorar em grande escala as matérias-primas, com a mão de obra barata ou, às vezes, escravizada, para as indústrias das metrópoles.


Filosofia Africana

Dito isso, a filosofia africana tem a virtude de refletir sobre uma realidade que tem algo em comum com a realidade latino-americana e caribenha, mas difere em vários aspectos pelos contextos sócio-históricos de ambos os continentes. Um destes aspectos é, por exemplo, as línguas autóctones. Estas seguem sendo uma fonte inesgotável para as pesquisas em ciências sociais e humanidades. Relacionado a isso, também as culturas autóctones, às vezes consideradas como “autenticamente africanas”, foram uma mina para empreender práxis de libertação ou de transformação política, social… de países africanos. Os exemplos ilustrativos disso são abundantes.

Com efeito, muitos líderes políticos e/ou intelectuais se valeram de recursos de suas línguas e culturas, para propor mudanças simbólicas e concretas em seus países. Aqui podemos citar alguns casos, como o de Thomas Sankara[10], em Burkina Faso (recorrendo à cultura e línguas nativas, mudou o nome de seu país que antes se chamava “Haute Volta”); Julius Kambarage Nyerere, na Tanzânia, recorreu às culturas africanas e à língua swahili, para propor um “socialismo africano”, que chamou de “Ujamaa”, que significa o fato de viver em família, em comunidade. O caso exitoso das duas últimas décadas foi o uso do “Ubuntu” (humanidade, o humano), na África do Sul. Neste país, utilizou-se esta “sabedoria” africana para pensar uma nova África do Sul, uma nova identidade sul-africana mais includente. Assim, também foi possível evitar o derramamento de sangue que muitos profetas de desgraças já haviam prognosticado.


Novas racionalidades


Em suma, a filosofia africana oferece elementos que podem ser valiosos para pensar de forma diferente a realidade latino-americana e caribenha. Nesta última região, não se considerou, em seu justo valor, as contribuições das culturas subordinadas (principalmente as indígenas e “afro”). Eu estimo que nessas culturas — dominadas, exploradas e marginalizadas — existe um potencial enorme para pensar, a partir de outras racionalidades, a realidade latino-americana e caribenha, e dessa maneira dar uma nova seiva aos processos de transformação ou de mudança que ocorreram na região.

A racionalidade ocidental chegou aos seus limites e nos está levando ao precipício da autodestruição! É o momento de considerar novamente outras racionalidades que foram marginalizadas pela suposta “racionalidade universal”. Nisso, a filosofia africana se apresenta como uma alternativa.

IHU On-Line: Que racionalidades o Sul Global apresenta como alternativa à perspectiva hegemônica? Que relação nós temos com o “outro” a partir da perspectiva Ubuntu?

Jean Bosco Kakozi Kashindi: Já existem racionalidades anti-hegemônicas que, independentemente das polêmicas que há em torno delas, podemos asseverar que são racionalidades do Sul Global[11]. A filosofia da libertação, o pós-colonialismo, o “giro decolonial”, o “pachamamismo”, a filosofia maia tojolabal, o Ubuntu, entre outras, são esforços louváveis na busca de outras vias para “sentipensar”[12] a “nossa América”.



Ubuntu

O Ubuntu, por exemplo, considerado como “humanismo africano”, “ética africana” ou “filosofia africana” por antonomásia, tem seus fundamentos nas vivências comunitaristas das pessoas, ou seja, na alteridade. Com efeito, nos estudos sobre o Ubuntu, fala-se sempre do aforismo xhosa[13] onde encontramos essa expressão: “Ubuntu ungamuntu ngabanye abantu” ou seu equivalente em zulu: “Umuntu ngumuntu ngabantu” (a pessoa é ou torna-se pessoa no meio de ou através de outras pessoas).
No horizonte do Ubuntu, parafraseando Desmond Tutu[14], a outra pessoa é condição de possibilidade para a minha realização como ser humano; o outro me dá confiança na minha humanidade, porque a compartilhamos; minha humanidade está inextricavelmente ligada à da outra pessoa, pois pertencemos a um feixe de vida, diria o prêmio Nobel da Paz, Desmond Tutu.

Concepção humanista

Então, a partir dessa concepção humanista, a relação com o outro[15] torna-se ontológica, epistemológica, social e politicamente falando, necessária, vital. Pois sem o outro, não existe a possibilidade da humanidade, do conhecimento da vida; com o outro, ao contrário, postula-se o humano e outros valores como a solidariedade afetiva, calorosa, a responsabilidade… e liberta-se dos ídolos da morte que são o egoísmo, a marginalização social, o racismo, entre outros.

IHU On-Line: Como a ideia de identidade é reorganizada pela perspectiva do Ubuntu?


Jean Bosco Kakozi Kashindi: A identidade é um aspecto fundamental no Ubuntu. De fato, este último foi levado à arena política, na África do Sul, para também ajudar a repensar a identidade sul-africana. Era preciso sair da concepção de “cidadãos” separados, que está por trás da ideologia da segregação racial, para inventar uma identidade sul-africana includente; era preciso “criar” uma nova concepção da cidadania sul-africana. Nesta, deviam caber todas as cores, todas as culturas, todas as narrativas nacionalistas (africâner, britânica, zulu, xhosa, tswana, etc.) que compunham a África do Sul. Com o Ubuntu operou-se a mudança da concepção da identidade a partir do “eu sou porque tu não és” (concepção excludente) para o “eu sou porque nós somos, e dado que somos então eu sou[16]” (concepção includente).

Matriz conceitual

Ora, na conceitualização que Ramose faz do Ubuntu[17], este último é entendido como “humaness” ou “humanity”, em vez de “humanism”. O matiz conceitual que este autor estabelece entre ambos os termos é de suma importância para a questão da identidade. Para este autor, “humaness” é uma interpretação melhor do conceito de Ubuntu do que “humanism”, pois sugere tanto uma condição de ser, como um estado de devir, de abertura ou de incessante desenvolvimento [do ser]. Desta maneira, [humaness] opõe-se a qualquer “-ism”, incluindo o “humanism”, porque esse [-ism] tende a sugerir uma condição de finalidade, um fechamento ou uma espécie de algo absoluto, incapaz de ou resistente a qualquer movimento[18].
Então “humaness” evoca a ideia de humanidade como atividade, ou seja, como um processo aberto, uma humanidade que está sendo. Isto é fundamental para a compreensão e a vivência das identidades. Estas são vistas então não como algo acabado, mas como algo que está sempre em processo, algo que segue sendo. Nesta perspectiva, então, uma identidade nacional — por exemplo, a sul-africana — deve ser entendida como aberta, já que o ser humano nunca termina de ser.

Vendo-o assim, as identidades devem viver em uma tensão dialética entre a “exclusão” dos outros e a inclusão dos mesmos em um “nós”. A exclusão não deve ser entendida como negação dos outros (não estamos no “eu sou porque tu não és”), mas como uma diferenciação ou distinção dentro do “nós”. Afinal de contas, este último vai sendo, ontológica, epistemológica e fenomenologicamente falando, na atividade de “reunir diferenciando”. Isto lembra precisamente o que o filósofo mexicano Leopoldo Zea dizia: “somos iguais porque somos diferentes”.

IHU On-Line: De que maneira os conceitos de subjetividade e intersubjetividade são tensionados e reconstruídos pela lógica do Ubuntu?

Jean Bosco Kakozi Kashindi: Dado que em Ubuntu parte-se do aforismo “Umuntu ngumuntu ngabantu” (“a pessoa é pessoa no meio de outras pessoas” ou “eu sou porque nós somos”), entende-se que existe uma igualdade ontológica de todas as pessoas, e dentro dessa igualdade há uma relação existencial, vital, que permite que alguém seja o que é; por isso uma interdependência vital entre não só todos os humanos, mas também entre estes e outras entidades cósmicas.

Sob esta ótica, deduzem-se três postulados éticos importantes: primeiro, todas as pessoas são valiosas em si mesmas, motivo pelo qual ninguém pode ser considerado como inútil na sociedade; segundo, se todas as pessoas são valiosas em si mesmas, segue-se que são sujeitos, isto é, agentes que podem e devem incidir na sociedade na qual vivem; terceiro, no horizonte do Ubuntu, os sujeitos são como tais pela relação intrínseca e imprescindível que têm com os outros lato sensu, daí a intersubjetividade inerente e constitutiva das pessoas. Parafraseando Lenkersdorf[19], esta intersubjetividade é “nosótrica”, pois evoca aquele “nós” sempre aberto, constitutivo do eu, mas sem aniquilá-lo. Nisso se vê precisamente a tensão insolúvel que se vive sempre entre o “eu” e o “nós”. Esta tensão dialética deve ser, no meu modo de ver, o motor da transformação de qualquer sociedade.

IHU On-Line: Qual é a contribuição da perspectiva do Ubuntu à filosofia latino-americana?


Jean Bosco Kakozi Kashindi: A filosofia africana tem muito em comum com sua irmã filosofia latino-americana. Na minha opinião, a especificidade da contribuição do Ubuntu à última está em recuperar e/ou restaurar o ser humano todo dentro da sociedade, entendida esta como uma “comunidade cósmica de vida”. Ou seja — em termos kantianos[20], mas ampliando o postulado ético do filósofo alemão —, uma concepção do ser humano não como meio, mas como fim em si mesmo; não obstante, esse ser humano sempre deve estar consciente da alteridade, no sentido amplo, que o constitui. É um ser humano consciente de que a especificidade que o distingue de outros seres cósmicos (consciência, vontade, liberdade...) o torna mais responsável pelo cuidado e não pela destruição ou extinção desses outros que o constituem.
E tudo isso encontra-se mutatis mutandis nas filosofias ou nas cosmovisões dos povos originários das Américas. Por esta razão, a contribuição do Ubuntu ou da filosofia africana à filosofia latino-americana seria, em poucas palavras, recordar a esta última que as racionalidades subalternas, oprimidas, marginalizadas ou desprezadas pela racionalidade ocidental imperante têm recursos inesgotáveis para pensar de maneira diferente a realidade da região e transformá-la.
IHU On-Line: Por que devemos pensar no outro como ponto de partida ético?
Jean Bosco Kakozi Kashindi: A “revolução levinasiana”, se se pode dizer assim, consistiu em superar Heidegger[21], antepondo a ética à ontologia. Para Lévinas[22], o rosto do Outro irrompe antes que qualquer outro discurso, e o faz a partir da sua nudez e do temor que inspira. Mas esse outro vive em uma sociedade concreta, isto é, que tem um contexto histórico de sua formação, um sistema político concreto, valores comuns, etc. Por esta razão, a ética e a ontologia, na minha forma de ver, são chamadas a conviver em uma dialética aberta ou, nas palavras do filósofo mexicano Mauricio Beuchot[23], em uma dialética analógica. Esta ajudaria, por exemplo, a pensar uma justiça prudencial que não leve em conta apenas os agravos ou danos cometidos, mas o contexto e as circunstâncias em que foram cometidos.
Outro como ponto de vista ético
Dito isso, evocar o outro como ponto de partida ético é, no horizonte do Ubuntu, fundamental. Pois a realidade social que se vive depende muito das relações tecidas com a alteridade; em termos lenkersdorfianos, depende da “cosmovivência” [24]. Explico-me: tomemos o exemplo da marginalização social no México. A maioria dos pobres no México são pessoas indígenas e afro-mexicanas; em todo o caso, são pessoas de cor escura ou menos branca[25]. Esta situação é assim, em grande medida pelo contexto histórico-social (conquista espanhola, escravização dos africanos, mestiçagem, etc.) no qual o México foi “inventado”.
Nesse contexto, o outro (indígenas e africanos) foi considerado pelos brancos (espanhóis) como inferior e inclusive como não humano. As relações interpessoais racializadas que nasceram desse contexto seguem afetando atualmente milhões de indígenas e afrodescendentes. Relacionado a isso, a racionalidade ocidental que levou à institucionalização destas relações racializadas desprezou, marginalizou e, em certa medida, destruiu as racionalidades indígenas e africanas ou “afro”. Assim se arremeteu sobre os povos originários e os escravizados africanos, explorando impiedosamente os recursos naturais deste país. Exemplos como este são abundantes na região, mas estão fora do alcance desta entrevista. Devemos destacar que a racionalidade que sustentou tanto a conquista como a escravização só podia ser “anti-humana”, “anticósmica”; eu a chamaria realmente de “altercida”[26]; nela imperava justamente o “eu sou porque tu não és”.
Ética
Voltando à pergunta, partir do outro como ponto de partida ético — vale a redundância — é então considerar que vivemos em um mundo, em uma sociedade, que é, parafraseando Tempels, como uma rede, onde não se pode mover um fio sem que os outros se movam. Com outras palavras, já não há a necessidade de demonstrar que dependemos não apenas dos outros seres humanos, mas também de outras entidades cósmicas (ar, água, montanhas, árvores, minerais, animais, etc.) que nos possibilitam viver. Negligenciar o Outro é, na perspectiva do Ubuntu, desumanizar-se. Urge, pois, sair ao encontro desse Outro, reconhecê-lo e construir com ele uma solidariedade afetiva, calorosa, como a própria etimologia da ética indica.
IHU On-Line: Por que pensar a realidade do Sul Global a partir de uma perspectiva eurocêntrica mostrou-se incapaz de dar conta dos desafios colocados às comunidades do “Novo Mundo”?
Jean Bosco Kakozi Kashindi: Creio que a resposta a esta pergunta pode ser encontrada esboçada em linhas anteriores. Aqui bastaria recordar que pensar a realidade do Sul Global a partir de uma perspectiva somente eurocêntrica, isto é, a partir da racionalidade ocidental, já mostrou seus limites. E isto pelo simples fato de que a América Latina não é a Europa nem os Estados Unidos, por mais que queiram que assim seja! Embora os europeus e as culturas e civilizações europeias tenham desembarcado, seguem presente, na região latino-americana e caribenha, outras culturas e civilizações não europeias. O que isso significa? Significa que há, na região, outras racionalidades que seguem operando contra, paralela ou transversalmente à ocidental.
Passar por alto esta realidade não é senão fazer a “política do avestruz”, ou seja, fingir não ver as ameaças. O que não quer dizer que se defende o desaparecimento e a exclusão da racionalidade ocidental; propõe-se antes uma inclusão verdadeira e consequente de outras racionalidades operantes na região, que durante séculos foram marginalizadas. É preciso apostar em um diálogo frutífero com elas em benefício do bem de todas as sociedades latino-americanas e caribenhas.
IHU On-Line: Em um contexto globalizado, cujo financeirismo abarca praticamente a totalidade das relações sociais, como é possível promover uma ruptura epistemológica em nome de uma perspectiva mais democrática?
Jean Bosco Kakozi Kashindi: Nossos sonhos mais diurnos são que os detentores do poder na região e/ou a elite das nossas sociedades ouvissem o clamor de seus povos e se dignassem a descer ao “vale de lágrimas” para sentir também na própria carne as realidades humanas e socialmente intoleráveis... Agora me vêm à mente os rostos dos mendigos, das “meninas e meninos de rua”, as pessoas sem lar… que pululam nas ruas das grandes cidades latino-americanas; como não recordar que há milhões de pessoas que trabalham duramente, inclusive fazendo horas extras, para ganhar uma miséria, ao passo que para outras pessoas basta que assinem algum documento ou estejam presentes sem tocar em praticamente nada, para ganhar milhões... Já em nossas sociedades capitalistas e neoliberais fala-se e vive-se com “pessoas descartáveis”. Estamos nos pontos extremos da lógica da exploração capitalista, um dos monstros criados pela racionalidade ocidental.
Vozes que se levantam
Como romper com essa lógica? Não tenho uma resposta contundente, já que o capitalismo, assim como a hidra, soube como renascer das suas cinzas, soube revestir-se de outros rostos, deixando o fundo igual. No entanto me atreveria a dizer que nem tudo está perdido; há esperanças. Já há vozes que se levantam, tanto no Sul como no Norte, para lutar por novos modelos econômicos, por um mundo mais justo e multipolar, por uma nova forma de relacionar-nos com o meio ambiente ou a natureza, etc. Já não se pode seguir com a imposição epistêmica da racionalidade ocidental. Esta não deve ter a exclusividade de dizer a todo o mundo o que devem conhecer, como devem fazer, em que devem crer, o que devem esperar, etc.
Barbárie
Vários intelectuais do Norte[27] já fizeram críticas, às vezes duras, contra a racionalidade ocidental, demonstrando sua barbárie e seus limites. No entanto, são poucos os que se voltaram para ver o que está acontecendo no Sul Global. Nesta região “posicional” e não estritamente geográfica já estão ocorrendo ensaios de outras epistemologias, como a proposta de Boaventura de Sousa Santos[28], o giro decolonial, o pachamamismo, entre outras.
Nessas epistemologias o componente ético-político está muito presente. Trata-se de lutar contra o colonialismo, modo de pensar e agir da colonização e, evidentemente, fruto da racionalidade ocidental.
Empreender as lutas contra esse colonialismo a partir de outras racionalidades é, na minha opinião, descolonizar as mentes, libertar não apenas os seres humanos, mas toda a natureza que está ameaçada pela lógica da exploração capitalista. Fazendo-o assim é também libertar a vida, é escutar, respeitar e reconhecer esse Outro que me constitui; é, afinal de contas, libertar também a democracia, para viver aquilo que Lenkersdorf chama de “cosmocracia”[29].
IHU On-Line: Em que medida os problemas das nações latino-americanas são uma espécie de problema ético, em última medida, um problema do homem que é incapaz de reconhecer o outro como semelhante?
Jean Bosco Kakozi Kashindi: A América Latina nasce, seguindo Enrique Dussel[30], do encobrimento do outro. Por isso, esta região já vem à existência com um problema ético. As consequências desse problema não se fizeram esperar: em menos de um século de presença ocidental, a população originária foi dizimada e reduzida quase à metade. Isto foi um dos lados da destruição das “Índias Ocidentais”. Como quiseram remediar essa situação?
A Junta de Valladolid[31] (1550-1551) criou um marco político-jurídico que abriu a possibilidade da escravização dos africanos nas Américas. Novamente, isso foi um grave problema não apenas jurídico, mas também ético, já que os africanos que cruzaram o Atlântico e chegaram às Américas não eram capturados e/ou vendidos no contexto de uma guerra justa; também não eram animais ou “peças de ébanos”, sem alma, sem consciência, vontade e liberdade.
Pois bem, apesar das estritas proibições para mesclar-se, as três principais matrizes culturais e “raciais” (a indígena, a africana e a europeia) se mesclaram. Não obstante as mesclas que se produziram e as teorias estrategicamente voluntaristas da mestiçagem (México, Colômbia…), da democracia racial (Brasil), entre outras, que foram brandidas no desejo de romper com a época colonial, a inferiorização do outro diferente, “não branco”, permanecia em pé. Como resultado, temos, hoje, na América Latina e no Caribe, sociedades profundamente desiguais, racistas e excludentes.
Então, como já chamaram a atenção Simón Bolívar[32], Arturo Andrés Roig[33], Leopoldo Zea[34], entre outros, o problema da América Latina é  problema do homem no sentido genérico; é, afinal de contas, o problema da alteridade. E isto encontra um eco favorável no Ubuntu. Segue-se considerando o outro como inferior, como subumano, como não cidadão ou cidadão de segunda categoria… Ainda estamos longe de sair do túnel da multidão de problemas que seguem acometendo muitos países da região e, por conseguinte, freando o desenvolvimento harmonioso do subcontinente americano.
IHU On-Line: Ao olhar para a realidade do Sul Global no século XXI, que avanços e limites podemos perceber na proposição de racionalidades alternativas aos nossos desafios éticos?
Jean Bosco Kakozi Kashindi: Confesso não ter elementos suficientes para fazer um juízo cabal sobre avanços e limites das racionalidades alternativas. No entanto, gostaria de assinalar aqui tão somente alguns avanços que considero pertinentes e alguns pontos que poderiam ser limites.
Avanços
Na região houve muitos avanços nas propostas teórico-éticas que estão impactando os movimentos sociais indígenas, afros e camponeses. Entre algumas propostas que ajudaram nas mobilizações sociais, poderíamos citar “o giro decolonial”, a interculturalidade de Catherine Walsh[35], a “epistemologia do sul” de Boaventura de Sousa Santos, a ética ecológica de Leonardo Boff[36], a filosofia tojolabal de Carlos Lenkersdorf, a ética de libertação de Enrique Dussel, as contribuições teórico-metodológicas de estudos de gênero e da mulher (cada país tendo suas especificidades), etc. Relacionado a isso, é preciso mencionar também a importância das redes de intelectuais e/ou lutadores sociais que perseguem um objetivo essencialmente comum. Neste sentido, são dignos de apreço os encontros do Fórum Social Mundial.
Estamos vivendo, pois, uma época de muitas propostas teóricas, cujo ponto em comum é dizer um basta à lógica da organização social, política, econômica, religiosa e cultural a partir da racionalidade ocidental, isto é, desde uma racionalidade capitalista do homem branco, cristão, machista… No entanto, ainda falta um longo caminho a percorrer, e isso não apenas pela inércia das pessoas que estão no conforto, mas, sobretudo, pela dificuldade de mudar as estruturas que, durante séculos, se encarregaram de produzir o sistema desumano no qual vivemos.
Desafios
Aqui me vêm à mente algumas perguntas que expressam realmente os limites das racionalidades alternativas. Vejamos um caso ilustrativo: a educação (em seu sentido mais amplo e não reduzido à escola) foi um dos campos de batalha mais importantes tanto para os liberais e socialistas, como para os conservadores, na região. Mas, hoje sabemos que a maior parte da educação no subcontinente está colonizada. Pois o colonialismo, como modo de pensar a realidade, permeou todos os âmbitos da sociedade latino-americana, desde a família, as escolas, as universidades, os centros culturais, até as igrejas. Assim, o colonialismo converteu-se praticamente em uma das culturas do subcontinente.
Diante deste panorama, como é possível descolonizar a educação? Quem financia a educação? Quem deve descolonizar a quem? Isso me faz pensar na Tese III de Marx[37] sobre Feuerbach[38], segundo a qual são os homens que mudam as circunstâncias e que o educador também precisa ser educado. Portanto, minha dúvida é se todos aqueles que propõem racionalidades alternativas estão suficientemente descolonizados. Daí a importância capital, penso, de fazer uma autocrítica permanente, para seguir firme nos caminhos descolonizadores.
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[1] Não existem diferenças teóricas significativas para dizer “filosofia africana bantu” ou simplesmente “filosofia africana”. Porque, primeiro, seguindo Cheik Anta Diop, apesar da diversidade de vivências culturais, existe uma unidade cultural dos povos que moram no sul do Saara; segundo, o bantu limita-se no aspecto linguístico, razão pela qual em um mesmo país é possível encontrar povos que compartilham uma mesma cultura, um mesmo espaço…, mas alguns falam uma língua bantu e outros uma língua não-bantu (nilótica, por exemplo); terceiro, o termo “bantu” foi durante muito tempo utilizado pejorativamente pelos brancos durante o apartheid na África do Sul para segregar racialmente os negros. Estas razões, entre outras, levaram vários filósofos e/ou pensadores e africanistas a falar apenas de “filosofia africana”. (Nota do Entrevistado)
[2] Placide Tempels (1906-1977): padre franciscano belga, foi missionário na região da África Central e atuou como etnofilósofo. Tornou-se conhecido por seu livro La Philosophie bantoue (Paris: Présence Africaine, 1945). (Nota da IHU On-Line)
[3] Não se deveria fazer a concordância deste apelativo e tampouco se deveria colocar artigo e plural e dizer os bantus ou bantues, porque em si este termo já está no plural; “bantu” significa pessoas. E os artigos estão sobrando e poderiam desorientar um pouco a compreensão, porque em línguas bantu não apenas não existem, mas também que “bantu” inclui os dois gêneros (masculino e feminino), neutro, inclusive. No entanto, nas línguas neolatinas costuma-se antepor artigo apenas, na minha opinião, por motivos eufônicos. (Nota do Entrevistado)
[4] Ver TEMPELS, Placide. La philosophie bantoue. Paris: Présence Africaine, 1945, p. 30-47. (Nota do Entrevistado
[5] Fabien Eboussi Boulaga (1934): é um filósofo camaronês, nascido na cidade de Bafia, no Camarões. Realizou estudos no Seminário Menor de Akono no sul de Camarões, antes de entrar na Companhia de Jesus, em 1955. Foi ordenado sacerdote em 1969. É conhecido por suas posições teóricas, incluindo a publicação do "problema Bantu", em 1968, o que provocou um protesto em círculos da Igreja. (Nota da IHU On-Line)
[6] Marcian Towa (1931-2014): é um filósofo nascido no Camarões. Sua filosofia tornou-se influente no pensamento africano no século XX, influenciando inúmeros outros estudiosos. (Nota da IHU On-Line)
[7] Paulin Hountondji (1942): é um filósofo e político beninense. Hountondji foi educado na École Normale Supérieure, em Paris, graduando-se em 1966, onde realizou doutorado em 1970, cuja tese foi sobre Edmund Husserl. Depois de dois anos de ensino em Besancon (França), em Kinshasa e Lubumbashi (República Democrática do Congo), ele aceitou um cargo na Université du Bénin Nationale, onde ainda leciona como professor de Filosofia. (Nota da IHU On-Line)
[8] [8] Ver BIYOGO, Grégoire. Histoire de la philosophie africaine. Livre III, Les courants de pensée et les livres de synthèse. Paris: L’Harmattan, 2006. (Nota do Entrevistado)
[9] [9] Thabo Mvuyelwa Mbeki (1942): é um político da África do Sul e ex-presidente do país, que governou entre 14 de junho de 1999, sucedendo a Nelson Mandela, e 20 de setembro de 2008, quando renunciou por falta de apoio político no parlamento de seu partido, Congresso Nacional Africano. (Nota da IHU On-Line)

[10] Thomas Isidore Noël Sankara (1949-1987): foi um militar e líder político de Burkina Faso. Foi um popular capitão e o primeiro-ministro quando o país ainda se chamava República do Alto Volta. Logo depois, tornou-se o quinto presidente voltense desde a libertação do jugo francês e o primeiro de Burkina Faso. Ele também enunciou os objetivos da "revolução democrática e popular" com as tarefas de erradicar a corrupção, a luta contra a degradação ambiental, o empoderamento das mulheres, e aumentar o acesso à educação e cuidados de saúde. Durante o curso de sua presidência, Sankara implementou com sucesso programas que muito reduziram a mortalidade infantil, aumentaram as taxas de alfabetização e frequência escolar e aumentaram o número de mulheres que ocupam cargos governamentais. Seu governo tentou abolir também os privilégios tribais e baniu as mutilações genitais, os casamentos forçados e a poligamia. (Nota da IHU On-Line)
[11] Entendo o “Sul Global” no sentido que lhe dão Boaventura de Sousa Santos e outros estudiosos latino-americanos e caribenhos próximos ao “giro decolonial”, isto é, “Sul Global” como uma posição na existência ou uma condição de existência no sistema mundo capitalista europeu e norte-atlântico, mais que uma localização geográfica. Essa condição de existência alude à dominação e injustiças históricas do “hemisfério norte” para com o “hemisfério sul”, as mesmas que produziram pobreza, marginalização social, exploração, racismo... (Nota do Entrevistado)
[12] Retomo este termo do filósofo mexicano maia tzeltal Juan López Intzín. Ver INTZÍN, Juan López. Ich´el ta muk´: la trama en la construcción mutua y equitativa del Lekil kuxlejal (vida plena-digna). Conferência dada em 14 de abril de 2011 no Centro Regional de Investigaciones Multidisciplinarias, da Universidade Nacional Autônoma do México, Cuernavaca, Morelos. Disponível em: http://www.educrim.org/drupal612/sites/default/files/Lopez.pdf. (Nota do Entrevistado)
[13] Xhosa e zulu são etnias sul-africanas. O atual presidente da África do Sul, Jacob Zuma é zulu, ao passo que Nelson Mandela era xhosa, e o arcebispo emérito Desmond Tutu também é xhosa
[14] Desmond Tutu (1931): Bispo anglicano sul-africano. Trabalhou como professor secundário e, em 1960, ordenou-se sacerdote anglicano. Após estudar teologia por cinco anos na Inglaterra, foi nomeado deão da catedral de Santa Maria, em Johannesburgo, sendo o primeiro negro a ter tal nomeação. Sagrado bispo, dirige a diocese de Lesoto de 1976 a 1978, ano em que se torna secretário-geral do Conselho das Igrejas da África do Sul. Sua proposta para a sociedade sul-africana inclui direitos civis iguais para todos; abolição das leis que limitam a circulação dos negros; um sistema educacional comum; e o fim das deportações forçadas de negros. Sua firme posição anti-apartheid – a política oficial de segregação racial – lhe vale, em 1984, o Prêmio Nobel da Paz. (Nota da IHU On-Line)
[15] Cabe mencionar que esse “outro”, na perspectiva da filosofia africana, não se limita apenas aos seres humanos, mas inclui também outras entidades cósmicas (animais, árvores, ar, rios, etc.). Daí a dimensão ético-ecológica do Ubuntu. (Nota do Entrevistado)
[16] Este enunciado é do escritor e filósofo queniano John Mbiti. Neste enunciado encontra-se a tradução que Desmond Tutu dá à máxima xhosa “Ubuntu ungamuntu ngabanye abantu”; costuma traduzi-la como “eu sou porque nós somos”. O acadêmico e religioso ganês Noah Dzobo, por sua vez, dando uma precedência ontológica ao “nós”, definia a ética comunitarista africana como “nós somos, portanto sou; e porque eu sou então somos”. Para uma aproximação a esses postulados da ética africana, ver: EZE, Michael Onyebuchi. Intellectual history in contemporary South Africa. New York: MacMillan, 2010, pp. 94-95. (Nota do Entrevistado)
[17] Ver RAMOSE, Mogobe B. African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond Books Publishers, 2002. (Nota do Entrevistado)
[18] Ver Ibid., p. 123. (Nota do Entrevistado)
[19] Ver LENKERSDORF, Carlos. Filosofar en clave tojolabal. México: Porrúa, 2002. (Nota do Entrevistado)
[20] Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século XIX, as quais se tornaram um ponto de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador com o título Kant: razão, liberdade e ética, disponível para download em http://bit.ly/ihuon93. Também sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant - Razão, liberdade, lógica e ética, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da revista IHU On-Line, de 06-05-2013, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios, disponível em http://bit.ly/ihuon417. (Nota da IHU On-Line)
[21] Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947), Introdução à metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de 19-06-2006, intitulada O século de Heidegger, disponível em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-2006, intitulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, Cadernos IHU em formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução da metafísica, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12. Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do ciclo de estudos Filosofias da diferença - pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. (Nota da IHU On-Line)
[22] Emmanuel Lévinas (1906-1995): filósofo e comentador talmúdico lituano, de ascendência judaica e naturalizado francês. Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger, cuja obra Ser e tempo o influenciou muito. “A ética precede a ontologia” é uma frase que caracteriza seu pensamento. Escreveu, entre outros, Totalidade e Infinito (Lisboa: Edições 70, 2000). Sobre o filósofo, confira a entrevista com Rafael Haddock-Lobo, publicada em 30-08-2007 no sítio do IHU, intitulada Lévinas: justiça à sua filosofia e a relação com Heidegger, Husserl e Derrida, disponível em http://bit.ly/1bZ77kk, e a edição número 277 da IHU On-Line, de 14-10-2008, intitulada Lévinas e a majestade do Outro, disponível em http://bit.ly/1gsnUOI. (Nota da IHU On-Line)
[23] Mauricio Hardie Beuchot Puente (1950): é um filósofo mexicano reconhecido como um dos principais pensadores contemporâneos da América Latina. Possui ampla obra sobre filosofia da linguagem, filosofia analítica, o estruturalismo e Hermenêutica. Ele é fundador da proposta chamada hermenêutica analógica, hoje reconhecida como uma proposta original e inovadora. (Nota da IHU On-Line)
[24] A “cosmovivência” é o modo particular maia tojolabal de entender, explicar e viver a realidade. Os tojolabales, segundo Lenkersdorf, sentem-se membros do cosmos que vive, o que implica uma relação muito respeitosa com as outras entidades cósmicas que, na sua cosmovisão, são “não objetos”, ou seja, sujeitos, e fazem parte do “nós”. Ver: “Vivir sin objetos”. In: El saber filosófico. Tópicos No. 3, Coord. Martínez Contreras Jorge, Ponce de León Aura, Asociación Filosófica de México. México: Siglo XXI, 2007. (Nota do Entrevistado)
[25] Isto me faz recordar da afirmação do sociólogo e antropólogo Roger Bastide, segundo o qual nas Américas a riqueza tem cor. (Nota do Entrevistado)
[26] Nas minhas reflexões para a tese de doutoramento (La Dimensión ético-política de Ubuntu y la superación del racismo en “nuestra América”. México: UNAM, 2014, em análise), uso este termo para significar a ideologia, os desejos, as atitudes, as ações... que tendem sempre a matar, exterminar, destruir esse Outro que nos constitui. (Nota do Entrevistado)
[27] De maneira particular a chamada “Escola de Frankfurt”. (Nota do Entrevistado)
[28] Boaventura de Sousa Santos (1940): doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, Estados Unidos, e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal. É um dos principais intelectuais da área de ciências sociais, com mérito internacionalmente reconhecido, tendo ganho especial popularidade no Brasil, principalmente depois de ter participado nas três edições do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Confira a entrevista O Fórum Social Mundial desafiado por novas perspectivas, concedida por Boaventura ao sítio do IHU em 30-01-2010, disponível em http://bit.ly/BoaventuraIHU. (Nota da IHU On-Line)
[29] Lenkersdorf define-a como um “governo” que se vive no mundo maia tojolabal, onde há um reconhecimento e/ou respeito mútuo entre todos os entes que compõem o cosmos. Exclui-se a prepotência, a presença de líderes, caudilhos, chefes destacados, presidentes, superiores, partidos. Nesse “governo”, a convivência política caracteriza-se pelo consenso de todos os que representam o “nós”, conceito chave da cosmocracia. Ver LENKERSDORF, Carlos. “Vivir sin objetos”. In: El saber filosófico. Tópicos No. 3, Coord. Martínez Contreras Jorge, Ponce de León Aura, Asociación Filosófica de México. México: Siglo XXI, 2007, pp. 71, 73. Em relação à organização sociopolítica de uma sociedade, trata-se de algum modo de deslocar o olhar da pessoa, como é o caso, teoricamente falando, da democracia, e fixá-lo em todo o cosmos; é reconhecer e incluir as outras entidades cósmicas nas decisões que afetam toda a comunidade, entendidas essas entidades, na cosmovisão tojolabal, como “não objetos”, ou seja, também como sujeitos. (Nota do Entrevistado)
[30] Enrique Dussel (1934): filósofo argentino radicado (exilado) desde 1975 no México. É um dos maiores expoentes da Filosofia da Libertação e do pensamento latino-americano em geral. Autor de uma grande quantidade de obras, seu pensamento discorre sobre temas como: filosofia, política, ética e teologia. Tem se colocado como crítico da pós-modernidade chamando por um novo momento denominado transmodernidade. Tem mantido diálogos com filósofos como Apel, Gianni Vattimo, Jürgen Habermas, Richard Rorty, Lévinas. É um crítico do pensamento eurocêntrico contemporâneo. (Nota da IHU On-Line)
[31] Junta de Valladolid: é o nome habitual do famoso debate realizado em 1550 e 1551 no Colégio de San Gregorio, em Valladolid, na Espanha. A questão de fundo era a controvérsia nas conquistas com relação aos ameríndios, e que teve duas formas antagônicas de conceber a expansão europeia: a primeira, representada por Bartolomé de las Casas, hoje considerado um pioneiro na luta pelos direitos humanos, defendia o direito dos indígenas de não serem dizimados e aculturados; e a segunda proposta por Juan Ginés de Sepúlveda, que sustenta a lei e a conveniência de domínio espanhol sobre os índios, que eram vistos como naturalmente inferiores. Embora a história tenha demonstrado a racionalidade vencedora, na ocasião não houve resolução final. (Nota da IHU On-Line)
[32] Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar Palacios y Blanco (1783-1830): general e líder revolucionário responsável pela independência em relação à Espanha de vários territórios da América do Sul. (Nota da IHU On-Line)
[33] Arturo Andrés Roig (1922-2012): foi um filósofo e historiador argentino. Nascido em Mendoza, entrou na Universidade Nacional de Cuyo, de onde saiu em 1949 depois de ganhar uma licenciatura em Ciências da Educação. (Nota da IHU On-Line)
[34] Leopoldo Zea Aguilar (1912-2004): filósofo mexicano defensor do latino-americanismo integral na história. Ficou reconhecido por sua tese de graduação O positivismo no México (1945), em que aplicou e estudou o positivismo no contexto de seu país na transição dos séculos XIX e XX. (Nota da IHU On-Line)
[35] Catherine Walsh: professora na Universidade Andina Simon Bolívar, em Quito, Equador. (Nota da IHU On-Line)
[36] Leonardo Boff (1938): teólogo brasileiro, autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística. Boff escreveu um depoimento sobre as razões que ainda lhe motivam a ser cristão, publicado na edição especial de Natal da IHU On-Line, número 209, de 18-12-2006, disponível em http://bit.ly/iBjvZq, e concedeu uma entrevista sobre a Teologia da Libertação na IHU On-Line número 214, de 02-04-2007, disponível em http://bit.ly/kaibZx. Na edição 238, de 01-10-2007, intitulada Francisco. O santo, concedeu a entrevista A ecologia exterior e a ecologia interior. Francisco, uma síntese feliz, disponível em http://bit.ly/km44R2. Sua entrevista mais recente à IHU On-Line intitula-se Os intelectuais que têm algum sentido ético precisam falar sobre a Terra ameaçada e está disponível em http://bit.ly/Qpj45L. (Nota da IHU On-Line)
[37] Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores que exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século XX. Leia a edição número 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre o autor, confira a edição número 278 da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível em http://bit.ly/ihuon278. Leia, igualmente, a entrevista Marx: os homens não são o que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por Pedro de Alcântara Figueira à edição 327 da IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon327. A IHU On-Line preparou uma edição especial sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI, que retoma o argumento central da obra de Marx O Capital, disponível em http://bit.ly/IHUOn449. (Nota da IHU On-Line)
[38] Ludwig Feuerbach (1804-1872): filósofo alemão, reconhecido pela influência que seu pensamento exerce sobre Karl Marx. Abandona os estudos de Teologia para tornar-se aluno de Hegel, durante dois anos, em Berlim. De acordo com sua filosofia, a religião é uma forma de alienação que projeta os conceitos do ideal humano em um ser supremo. É autor de A essência do cristianismo (2ª ed. São Paulo: Papirus, 1997). (Nota da IHU On-Line)
*Texto publicado originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos, com o título "Metafísicas Africanas. Eu sou porque nós somos. Entrevista especial com Jean Bosco Kakozi Kashindi"




Filosofia africana

 Filọ́sọ́fi ti Áfríkà (filosofia africana)

A Filosofia é de origem Africana – Dr Molefi Kete Asante









Uma origem africana da Filosofia mito ou realidade? Molefi Kete Asante

 Por:  Molefi Kete Asante  
Tradução de Marcos Carvalho Lopes

Existe uma crença comum entre os brancos de que a filosofia se origina com os gregos. A ideia é tão comum que quase todos os livros sobre filosofia começam com os gregos, como se eles precedessem todos os outros povos quando se trata da discussão dos conceitos de beleza, arte, números, escultura, medicina e organização social. Na verdade, esse dogma é hegemônico nas academias do mundo ocidental, incluindo as universidades e academias africanas. É mais ou menos assim: 
  
A filosofia é a maior de todas as disciplinas.  
Todas as outras disciplinas se derivam da filosofia. 
 A filosofia é uma criação dos gregos.  
Os gregos são brancos. 
Portanto, os brancos são os criadores da filosofia.   

Na perspectiva desse dogma, outros povos e culturas podem contribuir com o pensamento, como os chineses – Confúcio -, mas  pensamentos não são filosofia; só os gregos podem contribuir para a filosofia. De acordo com esse raciocínio, os povos africanos podem ter religião e mitos, mas não filosofia. Assim, essa noção privilegia os gregos como os criadores da filosofia, a mais alta das ciências.  Existe um problema sério com essa linha de raciocínio. A premissa é falsa na medida em que os estudiosos revelaram que a origem da palavra “filosofia” não está na língua grega, embora venha do grego para o inglês. De acordo com dicionários de etimologia grega, a origem dessa palavra é desconhecida. Mas isso é assim se você está procurando pela origem na Europa. A maioria dos europeus que escrevem livros sobre etimologia não consideram as línguas zulu, xhosa, yorubá ou amárico, quando chegam a uma conclusão sobre se a origem da palavra é conhecida ou desconhecida. Eles nunca pensam que um termo usado por uma língua europeia pode ter vindo da África.  


                                                            
Existem duas partes na palavra “filosofia”, como ela chegou até nós a partir do grego, "Philo", que significa amigo (brother) ou amante e "Sophia", que significa sabedoria ou sábio. Assim, um filósofo é chamado de "amante da sabedoria".  A origem de "Sophia" está evidente na língua africana Mdu Ntr, a língua do antigo Egito, onde a palavra "Seba", que significa "o sábio", aparece pela primeira vez em 2052 a.C., no túmulo de Antef I, muito antes da existência da Grécia ou do grego. A palavra tornou-se "Sebo" em copta e "Sophia" em grego. Como para o filósofo, o amante da sabedoria, é precisamente aquilo que se entende por "Seba", o Sábio, em escritos antigos de túmulos egípcios.  Diodoro da Sicília, escritor grego, em seu Sobre o Egito - escrito no primeiro século antes de Cristo - diz que muitos dos que são "celebrados entre os gregos pela inteligência e ensino, aventuraram-se para o Egito nos tempos antigos, para que pudessem participar de suas tradições e copiar seus ensinamentos. 

Os sacerdotes do antigo egito relatam em sua história, a partir dos registros dos livros sagrados, que foram visitados por Orfeu e Museu, Melampo, Dédalo, e, além desses, o poeta Homero, o espartano Licurgo, o ateniense Solon, Platão, o filósofo, Pitágoras de Samos, e o matemático Eudoxo, assim como Demócrito de Abdera e Enópides de Quios, também estiveram lá". Obviamente, muitos gregos que aprenderam filosofia aventuraram-se na África para estudar. Eles vieram por muitas razões intelectuais. Pode-se ver que os gregos apreciaram o fato de que no Egito existiam homens e mulheres de grande habilidade e conhecimento, assim como os antigos egípcios apreciavam o fato de que havia homens e mulheres de maior conhecimento na Etiópia.  Segundo Heródoto, que escreveu no século V a.C. no Livro II de História, os etíopes diziam que os egípcios não eram nada mais que sua colônia. É claro que ainda hoje há todo um sistema de descrença sobre a história, experiências e conhecimentos dos povos da África, criado durante os últimos cinco séculos de dominação europeia. A retórica que nega a capacidade da África foi desenvolvida para acompanhar a desapropriação da África. Isso foi feito juntamente com as conquistas europeias da África, Ásia e América. 

A colonização não era apenas uma questão da terra, era uma questão de colonizar informações sobre a terra. Todavia, acredito que os antigos sabiam melhor que os especialistas contemporâneos da importância para os nãoafricanos de estudar na África.  Não houve Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Estados Unidos ou Espanha  para falar quando os gregos começaram a viajar para a África para estudar. Na verdade, eles primeiramente foram para a África e depois voltaram para a Grécia criando a Era de Ouro grega. Não foi antes, mas depois de terem estudado no Egito que esses povos conseguiram algum treinamento avançado.

 O que estou dizendo é que eles tinham que vir para a África e estudar com os sábios do antigo Egito, que eram negros, para ter condições de aprender medicina, matemática, geometria, arte e assim por diante. Isso aconteceu muito antes da existência de qualquer civilização europeia.  Por que os filósofos gregos estudaram na África? Tales, o primeiro filósofo é lembrado por ter estudado na África. Dizem que aprendeu filosofia dos egípcios. Eles estudaram no Egito porque era a capital cultural do mundo antigo. Pitágoras é conhecido por ter estudado por pelo menos vinte e dois anos na África. Pode-se obter uma boa educação em vinte e dois anos, talvez até alcançar um Ph.D.! Os gregos buscavam a informação filosófica que os africanos possuíam. 

Quando Isócrates escreveu sobre seus estudos no livro Busirus, disse: "Eu estudei filosofia e medicina no Egito". Ele não estudou esses assuntos na Grécia na Europa, mas no Egito e na África.  Não é só a palavra  filosofia que não é grega, a prática da filosofia já existia muito antes dos gregos. Imhotep, Ptahhotep, Amenemhat, Merikare, Duauf, Amenhotep, filho de Hapu, Akhenaton e o sábio de Khunanup, são apenas alguns dos filósofos africanos que viveram muito tempo antes da Grécia ou de algum filósofo grego existir.  Quando os africanos terminaram de construir as pirâmides, dois mil e quinhentos anos antes de Cristo, faltavam mil e setecentos anos para que Homero, o primeiro escritor grego, aparecesse!  E quando Homero surgiu e começou a escrever A Ilíada não demorou muito tempo para relatar o que havia acontecido ou o que estava acontecendo na África. Os deuses gregos reuniam-se na Etiópia. Dizem que Homero passou sete anos na África. O que ele poderia ter aprendido naquelas aulas com aqueles sábios professores? Poderia ter aprendido direito, filosofia, religião, astronomia, literatura, política e medicina.  

Os africanos não esperaram pelos gregos para descobrir como construir as pirâmides. Você pode imaginar os egípcios em pé em volta de pedreiras ou nas margens do Nilo, dois mil e quinhentos anos antes de Cristo, especulando sobre quando algum europeu viria sozinho para ajudá-los a medir o tamanho do planeta, calcular a largura, amplitude e profundidade, determinar a exata helicoidal crescente de Serpet (Sirius) e as inundações do Nilo, ou diagnosticar doenças do corpo humano? Liderados pelo faraó da História Africana, Cheikh Anta Diop, um novo quadro de estudiosos surgiu para desafiar todas as mentiras que foram ditas sobre a África e os africanos. Eles são os únicos que, como diz o poeta Haki Madhubuti, caminham na direção do medo, não para longe dele. Eles são exemplos reais de coragem e compromisso.  

Numa grande conferência patrocinada pela UNESCO, em 1974, no Cairo, sobre o "Povoamento do Egito", dois negros, Diop e Théophile Obenga, caminharam na direção do medo e quando terminaram de apresentar seus trabalhos haviam  quebrado todas as mentiras que foram ditas sobre africanos. Usando a ciência, a lingüística, a antropologia e a história, esses dois grandes gigantes intelectuais demonstraram que os antigos egípcios eram negros.  Eles usaram um teste de melanina na pele de uma múmia, a arte nas paredes de tumbas, correspondências com outras línguas africanas e os testemunhos dos antigos.  É muito interessante para mim que os antigos gregos soubessem muito melhor do que a atual safra de europeus, que são tomados como autoridade sobre o assunto, que os antigos egípcios viveram muito antes da chegada dos gregos, romanos, árabes e turcos ao Egito, e eram africanos, de fato, africanos negros.  Segundo Heródoto, em História, Livro II, os Colchians eram egípcios "porque, assim como os egípcios, tinham a pele negra e cabelo lanoso”. Aristóteles diz em Physiognomonica que "os egípcios e os etíopes são muito escuros".  

A cor dos antigos egípcios não deve ser questão de debates; essa só vem a tona porque sempre encontramos alguma pessoa branca que se esforça para manter a afirmação de que os africanos não poderiam ter construido as piramides e, especialmente, não africanos negros. É claro, todos devem saber que os egípcios eram africanos, mas o fato é que eles não eram apenas africanos, os egípcios tinham especificamente pele negra com cabelo lanoso.  A filosofia começa 2800 anos a.C. com pessoas de pele negra do Vale do Nilo, ou seja, 2200 anos antes do aparecimento de Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo ocidental. Nossos ancestrais 30.000 anos atrás separavam ocre vermelho de ferro em uma caverna da Suazilândia. Eles deveriam ter alguma ideia sobre aquilo que estavam fazendo. Devia haver alguma reflexão, algum processo pelo qual os anciões determinavam o que era para ser utilizado, para o que e em qual ocasião. Dessa forma, antes mesmo da escrita, temos evidências de que os africanos estavam engajados em discussões significativas sobre a natureza de seu ambiente.   

Molefi Kete Asante Mofeli Kete Asante é professor titular do departamento de Estudos Afro-americanos da Universidade de Temple na Filadélfia (EUA), onde fundou e implantou o primeiro programa de doutorado em Estudos  Afro-americanos dos Estados Unidos. Fundou e foi curador do Museu de artes e antiguidade africanas na cidade de Búfalo, NY. Viaja frequentemente à África, tendo se radicado durante vários anos no Zimbábue e se tornado chefe tradicional (rei) em Gana, sob o título de Nana Okru. Sua inovadora contribuição ao pensamento contemporâneo e aos estudos africanos esta reunida nas obras Afrocentricity (2003), Kemet, afrocentricity, and knowledge (1990) e The history of Africa (2007). 


Título original“An African Origin of Philosophy: Myth or Reality?” publicado em 2004/07/01 no City Press. Disponível em http://www.asante.net/articles/26/afrocentricity/. Permissão para a traduçãoe publicação gentilmente cedida pelo autor.