domingo, 17 de maio de 2015

Genocídio de jovens negros

Ìpakúpa àwọn ọ̀dọ́mọdé dúdú.
Genocídio de jovens negros.

Corpos dos jovens no Hospital
 Polícia Militar da Bahia faz limpeza étnica no bairro do Cabula, em Salvador.

                                                                    Àkójọ́pọ̀ Itumọ̀ (Glossário).
Ìwé gbédègbéyọ̀  (Vocabulário).

Ìpakúpa, s. Genocídio, holocausto.

Àwọn, wọn, pron.  Eles, elas. Indicador de plural.
Ọ̀dọ́, s. Adolescente, jovem.
Ọ̀dọ́mọdé, s. Jovem.
Dúdú, adj. Preto, negro


CPI da Câmara dos Deputados apura o extermínio de jovens negros: Reaja!

Publicado há 2 dias - em 15 de maio de 2015 » Atualizado às 12:28 


A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura o extermínio de jovens negros e pobres da Câmara dos Deputados vai requerer os laudos necroscópicos das 13 vítimas da Chacina do Cabula, cometida por policiais da Rondesp (Rondas Especiais), em Salvador, em 6 de fevereiro, e pedir informações ao Secretário de Segurança Pública da Bahia sobre mortes cometidas pela PM, como o assassinato de três jovens em Cosme de Farias, no mesmo dia (6/02). O governo baiano também terá que explicar a falta de acesso ao inquérito da morte de Jackson Borgens de Carvalho, 15 anos, morto em Itacaré, em junho de 2013, além das execuções cometidas pela PM no período da greve de 2012.
textos e fotos por Lena Azevedo para o Portal Geledés
Além disso, a CPI quer saber porque o Executivo mantém a divulgação do Manual da Tatuagem, cartilha considerada racista por movimentos sociais e que, a despeito dos protestos, continua sendo usada para formação policial. Além da Câmara, a Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado também está requerendo os laudos das 13 vítimas do Cabula e quer uma reunião com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e dos programas de proteção, criticados por integrantes da Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, nas duas Casas, na última semana.
“Todos os casos de familiares que chegarem até essa comissão têm que ter a nossa posição. Pela força e poder constituído pela própria CPI vamos pedir informações e realizar oitivas nos casos da Bahia, presentes aqui hoje, como o caso do Cabula, que a CPI vai visitar, das mortes em Cosme de Farias, a questão da greve da Polícia Militar de 2012 (que resultou em 187 assassinatos em 12 dias, boa parte atribuído pelo governo da Bahia à época aos policiais grevistas) e a de Itacaré. São casos que chegaram à essa CPI e não podemos nos omitir. O recorte racial ainda não entrou na cultura das políticas públicas do Brasil”, afirmou o presidente da CPI da Câmara Reginaldo Lopes (PT/MG).
Esse é o desfecho da ida de integrantes da Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto na CPI da Câmara dos Deputados, dia 28. Além do coordenador da Reaja, Hamilton Borges, participaram das audiências Edielle Santana, esposa de uma das vítimas da Chacina do Cabula, Edicarla Pinheiro, mãe de um dos jovens assassinados pela PM em Cosme de Farias no mesmo dia da chacina, em 6 de fevereiro, junto com outros dois rapazes, Maria das Dores Chaves de Oliveira, que teve o filho executado durante a greve da PM em 2012 e levou a carteira de trabalho do filho para provar que ele voltava para casa depois do serviço quando foi morto por policiais, e Antonio Carlos Borgens de Carvalho, pai de Jackson, assassinado, esquartejado e enterrado em ponto de desova em Itacaré, em 2013.
Outra audiência pública foi realizada no dia seguinte (29), na Comissão de Direitos Humanos no Senado. Os senadores também pediram os laudos necroscópicos dos 13 mortos no Cabula e a convocação da Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Social (Seppir) e dos coordenadores da Secretaria de Direitos Humanos, para explicar por que os programas de proteção à Testemunhas (Provita), Crianças e Adolescentes (PPCAM) e de Defensores de Direitos Humanos (PPDH) não conseguem atender familiares de negros vítimas da violência.

Mortes e encarceramento seletivos
Hamilton_Das Dores_CDH
A audiência na CPI da Câmara Hamilton Borges, coordenador da Reaja, destacou o caráter seletivo das mortes e encarceramentos no país. “Nós da Reaja estamos há 10 anos debatendo com a sociedade brasileira, com as instituições de defesa de direitos, com as instituições do estado brasileiro o grande drama e a grande tragédia para toda sociedade que é o racismo na sua combinação letal, que incide sobre o sistema de justiça. Um sistema de justiça extremamente seletivo, que escolhe pessoas negras e indígenas e tem nessas pessoas sujeitos que podem ser eliminados sem que ninguém lamente isso. Pessoas que inclusive possam morrer sem que isso constitua homicídio, ainda que não tenha sido legítima defesa, ainda que não exista qualquer exculpante (causa de exclusão da culpabilidade). “
O coordenador da Reaja ainda lembrou em dez anos, desde que a CPI que investigou os grupos de extermínio no Nordeste, em 2005, e que apontou a participação de policiais em execuções a situação só piorou.
“Vou usar um exemplo simples, o de um delegado de polícia alcançado por essa CPI (de 2005), que tem pelo menos 30 acusações por participação em grupos de extermínio e em atividades de tortura, que sentou ali na frente da CPI, que foi acusado por uma juíza, que tem uma família inteira de policiais que participa desses conluios criminosos que retiram a vida das pessoas desde os anos 80, com os esquadrões da morte, conhecidos por apelidos diversos em vários lugares (no Rio de Janeiro e na Bahia como Mão Branca). Essa pessoa alçou, em 2013, o cargo de persecutor de grupos de extermínio, foi designado pelo governador para ser a pessoa responsável para investigar esses grupos e de identificar pontos de desova na cidade de Simões Filho, que, segundo o Mapa da Violência de 2013, era a cidade com maior taxa de jovens negros mortos à época”, lembra.
“Essa CPI diz respeito ao governo que era de Paulo Souto, do grupo político de Antonio Carlos Magalhães (Souto foi sucessor de ACM e governou a Bahia entre 1995 e 1998 e, posteriormente, de 2003 a 2006). Naquela época os grupos chamados de esquerda entraram com ações, inclusive deputados que eram ligados aos direitos humanos, batiam, brigavam, nos apoiavam para que aquela situação não mais acontecesse. Ocorre que nós estamos na vigência de um governo democrático popular e esse delegado citado na CPI do Nordeste vira a pessoa que vai investigar os grupos de extermínio e os locais de desova. Nós precisamos dizer isso porque somos um movimento sem tutela, sem chefes, não temos relação com qualquer partido, somos movimento social. Se estávamos juntos com esses partidos que brigavam para que acabasse essa situação, nós, infelizmente, diante das mortes dos nossos filhos, irmãos, diante dos espancamentos, das perseguições, tivemos que combater um governo que parece que instala um estado democrático de direito penal”, critica Hamilton Borges.

Dispositivos racistas

Para o coordenador da Reaja, o racismo tem orientado a política de segurança pública da Bahia. Ele cita como exemplo a criação do Manual de Tatuagem, feito por um oficial da PM e que tem sido utilizado na formação de agentes de segurança, o Baralho do Crime, com fotos daqueles que a polícia considera perigosos, e os nomes de operações policiais que são explicitamente higienistas, como as Saneamento I e II, e racistas (Operação Quilombo).
“Estamos numa situação que foi fundada numa lógica de segurança pública lombrosiana – Lombroso é um médico que fundou a criminologia e tinha uma ideia de que a senhora   deputada com seus traços característicos africanos, seu crânio, seus lábios, nariz, seria um bandido padrão, nasceria com o traço da violência, nasceria com o traço da desgraça conforme as palavras desse médico. Nos causa espanto que um governo democrático popular crie uma cartilha e deixe que seu autor, um capitão da PM, que deveria ser chamado aqui para ser sabatinado, realizar formação nas guardas municipais, polícias militar e civil, que faça palestras em universidades e em outros locais com esse material racista”, denunciou o coordenador da Reaja.
“Dispositivos como essa Cartilha da Tatuagem indicam quem deve ser abatido, colocam uma marca em quem deve ser procurado pela polícia. O outro dispositivo, pasmem, é o Baralho do Crime, que é um jogo de paciência que está no site da Secretaria de Segurança Pública. Esse Baralho do Crime é inspirado nos Ases do Mal de George Bush, aquele baralho que Bush colocou na mão dos soldados americanos – muitos deles saídos dos guetos jovens, latinos – e eles ficavam ali olhando, memorizando o rosto de quem deveria ser abatido. Quando encontravam com pessoas que pareciam com qualquer árabe, eles matavam. A mesma coisa ocorre no Estado da Bahia com os negros e por nada, por nada”, argumentou.
Hamilton aproveitou para criticar o conservadorismo do Congresso, sobretudo o projeto de lei que reduz a maioridade penal. “Se for para essa Casa criar leis prevendo que um jovem seja perseguido pela polícia e pela Justiça com 14 anos, 16 anos nós não precisamos dessa Casa. Porque isso já foi experimentado em 1890. Em todos os lugares do mundo em que se criou a República a primeira coisa a ser feita foi uma carta de direitos. No Brasil não, a primeira coisa que fizeram foi um código penal, prevendo que pessoas de 14 anos podiam ser alcançadas pela polícia, e esses meninos eram negros. Todos os que querem diminuir a idade penal, ao fim e ao cabo, nos querem presos e mortos, mas não por um discurso moral e religioso como querem parecer que é. Talvez o discurso moral sirva para convencer as mentes mais fracas. Não a nossa, porque nós sabemos que esse debate e esse discurso, tanto quanto os dispositivos criados pela política de segurança, quanto a redução da maioridade penal e outras coisas para o encarceramento geram lucro. Estamos debatendo um discurso de lucro mais uma vez. Mais uma vez o nosso povo está sendo usado para o lucro, para que lucrem conosco”.
Houve também uma crítica indireta ao fato da CPI desde sua instalação, em março, só ter chamado especialistas de segurança e pesquisadores em suas audiências públicas.
“Nós negros queremos falar por nós mesmos, não admitimos o sequestro de nossa voz. Isso é um tema importantíssimo para uma CPI que aqui está colocada. Porque quando nós falamos das mortes dos negros, estamos falando de um conjunto de eliminações e que dizem respeito também ao epistemicídio, que é a morte da produção intelectual dos negros, seja na universidade ou fora da universidade. Já tratamos das questões teóricas que sempre são reclamadas de nós nesses espaços e por isso chamam os especialistas treinadinhos da academia. A capacidade de falar por nós, de apresentar nossa produção intelectual é o primeiro respeito que as Casas Legislativas, Executivas e Judiciárias devem ter.”

Chacina do Cabula

Hamilton também abordou a Chacina de Cabula, o sequestro e morte de Geovane Mascarenhas de Santana, 22 anos (morto dentro das dependências da sede da Rondesp, unidade da Polícia Militar, no bairro do Lobato em agosto de 2014. A moto e o celular do rapaz desapareceram) e da recente ação no bairro Cosme de Farias, em 26 de abril, quando a PM matou três pessoas e feriu outra.
“Nós somos um povo, estamos dentro de um território e estamos sendo vítimas de um genocídio. Essa polícia assassina pegou esse garoto Geovane, colocou no fundo de uma viatura da Rondesp e o conduziu ao quartel sem que houvesse na prática qualquer delito que justificasse sua prisão. É um insulto para a sociedade brasileira que policiais de uma guarnição da Rondesp abordem uma pessoa, levem-na para o quartel, retire seus testículos, a tatuagem no braço, que cortem os dedos e arranquem sua cabeça. Quem está falando isso não é a Reaja. É o Ministério Público da Bahia que indiciou 11 policiais por essa prática. Apesar de toda materialidade da execução, esses PMs continuam soltos”, relata Hamilton.
E foram também PMs da Rondesp que, no dia 6 de fevereiro, entraram em Vila Moisés, no Cabula, e levaram mais de 15 jovens para um campo de futebol. Os jovens tiveram pernas, braços quebrados. Foram executados de joelhos com tiros na cabeça. Desses, 13 morreram e três ficaram feridos. “Até agora o governador não autorizou a saída dos laudos necroscópicos e todos os laudos técnicos. Eles (os laudos) vazaram para jornalistas, mas o governador, que aplaudiu a ação no Cabula e que esteve conosco em uma reunião quando exigimos o resultado das necropsias, nos negou o acesso aos laudos. Essas pessoas foram executadas e como sempre a justificativa é de que participavam do tráfico de drogas. O governo não tem atuado para debelar os grupos de extermínio, os paramilitares, mas todas as mortes que comete contra jovens negros é colocada na conta de tráfico de drogas”, reclama.
Hamilton lembra que a Polícia Militar do Estado da Bahia surgiu em 1825 (em 17 de fevereiro, por decreto de D. Pedro I) para combater o Quilombo do Urubu, que era chefiado por uma mulher. “Essa mulher quando fugiu daquela operação policial, que poderia ser muito bem da Rondesp, subiu a ladeira do Cabula. A PM não precisa ser desmilitarizada. Ela tem que acabar. Nós precisamos desmilitarizar o espaço urbano, porque, ao fim ao cabo, são pessoas comuns, policiais que morrem todos são negros. Com os oficiais brancos, nada acontece.
O recado da Campanha Reaja para o governo é de resistência e de repúdio à atual política de segurança pública. A Reaja inclusive reivindica a demissão do secretário Maurício Barbosa. “Por todos esses fatos e dispositivos usados pela secretaria de Segurança Pública da Bahia afirmamos que essa política é racista. Isso está na fala do secretário da pasta que considerou a ação policial no Cabula ‘razoável’. O que nós estamos debatendo aqui não surge do acaso, surge de escolhas políticas e infelizmente a escolha política feita na Bahia, assim como a escolha política de se colocar o Exército para ocupar comunidades, dizendo que isso é segurança pública cidadã, são escolhas merecem todo o nosso repúdio”.
Senado
No dia 29, o grupo falou na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado, por solicitação dos senadores João Capiberibe (PSB-AP) e Regina Sousa (PT-PI). Após os relatos, o senador Capiberibe chegou a sugerir uma oitiva da CDH em Salvador, mas a ida da comissão foi negada pelo presidente da comissão, Paulo Paim (PT-RS). Diante da negativa, Capiberibe e Regina Souza fizeram requerimento solicitando os laudos dos 13 mortos no Cabula e convite para que a Seppir coloque o que a secretaria tem feito em relação ao extermínio de negros. Também serão chamados os coordenadores dos programas de proteção, para que expliquem por que não atendem os familiares de vítimas.

OS RELATOS NAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS
Edielle Santana, esposa de uma das vítimas da Chacina do Cabula, em 6 de fevereiro: “Meu marido foi morto porque saiu para jogar bola. Eu vim, mas a mãe dele não conseguiu. Ele era trabalhador e cheio de sonhos. A polícia matou ele pelas costas, com tiro na nuca, como foi com a maioria dos mortos no Cabula. A Rondesp age de forma terrível nos bairros onde a gente mora. Eles xingam mães de família, as crianças não podem brincar na rua, porque eles (a polícia) chegam dando tiro. Fazem isso porque é na periferia. Fizeram uma barbaridade dessa, de matar várias pessoas, muitas delas com menos de 17 anos. Se desconfiavam de algo, deveriam ter levado para averiguação e não matar desse jeito. Exames que foram feitos nas vítimas mostraram sinais de tortura antes de serem assassinados. Como é que a PM fala em troca de tiros? O governador (Rui Costa – PT-BA) disse que não queria ver as famílias dos policiais chorar. E nós podemos chorar com a morte dos nossos? ”, questionou. Edielle lembrou ainda que existem áreas na região utilizadas pela PM como pontos de “desova”.
Edicarla Pinheiro, mãe do jovem Alexandro, assassinado pela PM no bairro Cosme de Farias (Salvador), em 6 de fevereiro de 2015, mesmo dia da Chacina do Cabula:
“Meu filho era trabalhador. Estava indo para o trabalho quando foi abordado pela PM. O laudo mostra que ele apanhou muito antes de tomar cinco tiros. Foi perversidade pura. Era meu único filho e minha dor nunca vai passar”.

Maria das Dores Chaves de Oliveira, mãe de Edvanildo, assassinado durante a greve da PM da Bahia em 2012, quando voltava para casa após o serviço:
“Estou lutando há três anos não só por mim, mas por outras mulheres que perderam filhos, maridos. Meu filho foi morto durante a greve da PM de 2012. Ele era manobrista e estava chegando do trabalho quando policiais mandaram pessoas encostarem na parede. Meu filho devia achar que ia ser revistado e mandado embora depois, mas o que eles fizeram foi dar um tiro na nuca dele. Mataram as pessoas de costas, na covardia, sem chance de defesa. Onde quer que eu vá eu carrego a carteira de trabalho dele.
Na greve, eles mataram muita gente. Um menino morreu na cama, no Nordeste de Amaralina, um deficiente de Boca da Mata também foi executado – depois, na maior cara de pau, a PM foi pedir desculpas à família. Polícia que mata, que rouba (por que fizeram isso na greve, matavam e roubavam) é bandido fardado”.
Antonio Carlos Borgens de Carvalho, pai de Jackson Antonio Souza de Carvalho, executado com um tiro de espingarda calibre 12 na nuca, esquartejado e enterrado em um ponto de desova em Itacaré, Sul da Bahia, em junho de 2013:
“Gostaria de perguntar aos senhores (integrantes da CPI da Violência contra Jovens Negros e Pobres) como se sentiriam se tivessem um filho de 15 anos que nunca tivesse perdido um ano de escola, se fizesse algum esporte, como meu filho fazia – ele era judoca desde os 7 anos de idade, se o filho tivesse sido assassinado, encontrado em um buraco de cabeça para baixo, tendo as pernas cortadas, com um tiro de espingarda 12 na cabeça. Meu filho foi encontrado por mim. Eu e mais 25 pessoas tivemos que fazer as buscas. Buscar, encontrar, reconhecer para que algum tipo de polícia viesse a aparecer. Polícia essa, que quando apareceu, a única coisa que fez foi criminalizar meu filho. O delegado disse: ‘seu filho foi executado. Você sabia que seu filho era envolvido né? ’ Eu comecei me transformar, porque já estava numa condição desumana. Fez o delegado uma alusão a um jovem negro que foi assassinado e também encontrado pelos familiares dias depois de sua morte, em estado de decomposição, três anos antes do assassinato de meu filho. Meu filho foi morto em 23 de junho de 2013. Então, esse delegado quis dizer que meu filho era envolvido aos 12 anos? Jackson era um menino que estudava, nunca perdeu um ano de escola, judoca desde os sete anos de idade, surfista, estava em um curso de Guia de Turismo na cidade de Ilhéus, ao lado de Itacaré, morando na casa de minha tia, irmã de meu pai – portanto, ele não estava desassistido. Eu, socorrista concursado da prefeitura de Itacaré havia 4 anos.
Eu sou de Itacaré, que é um paraíso para alguns, um lugar onde em menos de dois anos mais de 20 jovens foram assassinados, esquartejados, desmembrados como meu filho foi, e jogados numa vala, onde são encontrados pelos urubus, quando não são enterrados, ou pela família, quando tem alguém que acompanha e tenta saber o paradeiro.
É lamentável viver em um estado em que as esferas municipais e estaduais não dão resposta. Eu estou aqui nessa Câmara acreditando, ao contrário do que algumas pessoas da minha família dizem, que eu sou maluco de acreditar e exigir justiça nesse país para preto, filho de preto. Eu estou aqui acreditando que haja alguma justiça. O inquérito da morte do meu filho foi concluído pelo delegado e está no Fórum de Itacaré e eu nem tive acesso. Eu, pai, não tive acesso ao inquérito, nem sei que matou o meu filho.
O pessoal falou do Cabula e de outros casos. Eu não consigo entender como é que Hamilton Borges, um cidadão comum, como é que Andréia Beatriz, uma médica, mas que é uma cidadã comum, como é que conseguem pegar uma família com 17 pessoas, dar cesta básica, colocar dentro de uma casa, ajudar com água, luz e tudo que uma família precisa, e um secretário de estado da Bahia afirmar que se eu voltasse para Itacaré e fosse assassinado eu seria mais um número na mão dele. Que país é esse que a gente está vivendo? Quer dizer que os negros só servem para ser mais um número?
Jackson era uma criança – porque 15 anos ainda não é adulto – que nunca perdeu um ano de escola, assistida pela família, que trabalhava – quando meu filho foi assassinado ele tinha um trabalho fixo pela manhã como cabelereiro e estudava à tarde. Meu filho voltou para Itacaré no fim de semana trabalhou sábado, domingo e foi executado no domingo à tarde. Como a gente pode ter um delegado de polícia que a única coisa que sabe fazer é criminalizar as pessoas que foram assassinadas, como fez com as outras vítimas?
É por isso que não posso deixar de fazer essa pergunta: como as senhoras e senhores dessa CPI se sentiriam se tivessem passado por isso? Evidente que ninguém faria isso com os senhores. Iriam pensar muito antes de fazer algo. Pensem e tentem imaginar o que eu sinto hoje. Eu não consigo entender, não há resposta. O governador Jacques Wagner (ex-governador e atual ministro da Defesa) disse que faria uma investigação, investigação que nunca tomei conhecimento. Em uma reunião recente com o atual governador, Rui Costa, ele também disse que faria uma investigação e daria uma resposta, resposta que não tive até o momento.
Essa é a nossa realidade. Itacaré, que é um paraíso para alguns, uma região que tem 26 mil habitantes, mas na sede são 12 mil e onde meu filho foi assassinado tem 3 mil moradores. Como é que um jovem que estuda e trabalha é assassinado e passam-se dois anos e nada é feito? A gente não está falando de Salvador, que tem três milhões de habitantes, nem Rio, ou São Paulo. A gente está falando de um lugar pequeno onde não há vontade política e nem policial para que alguma coisa seja feita.  
Estudante é morto e enterrado de cabeça para baixo
A frequência de execuções de jovens negros na Bahia é impressionante. E ela não se restringe à Região Metropolitana. Casos que dão a medida da vulnerabilidade da população negra e pobre.
O homicídio de Jackson Antonio Souza de Carvalho, 15 anos, praticado por grupo de extermínio no interior, mais especificamente em Itacaré, em 23 de junho de 2013, é uma história de horror e perversidade. E é exemplar porque revela não só uma morte cruel de um adolescente, mas a desestruturação de toda uma família, oprimida pelos assassinos após o crime.
Jackson era filho de Antonio Borges de Carvalho, conhecido como Tony, 34, funcionário público, socorrista do Samu, liderança negra com atuação reconhecida na luta contra o racismo. Jackson estudava e trabalhava também como cabelereiro durante a semana em Ilhéus, distante 70 quilômetros de Itacaré. Aos fins de semana voltava para a casa da mãe, que morava a 100 metros da residência do ex-marido e pai do adolescente.
“No sábado à noite ele falou comigo e disse que ia trabalhar no domingo (23 de junho). Dois homens que cortavam o cabelo com ele disseram que uma pessoa estava o chamando na casa dele (Tony pede para não divulgar do suspeito). Ele saiu do salão por volta de 12h20 com esses dois homens para ir à tal casa. Ninguém sabe se ele chegou ao lugar. Desapareceu”, rememora Tony.
O pai chegou a ir à Delegacia de Itacaré registrar um boletim de ocorrência e pedir ajuda para encontrar Jackson. A polícia não se mexeu. Ele então recorreu ao presidente da Câmara de Vereadores, Edson Arantes, o Nego, que conseguiu articular 25 pessoas para fazerem busca na região. Na terça-feira, 25 de junho, o grupo começou a procurar pelo corpo de Jackson em uma conhecida área de desova em Itacaré, localizada ao lado de uma creche municipal, no bairro Santo Antônio, a menos de um quilômetro da casa dos pais.
Jackson Antonio foi localizado enterrado de cabeça para baixo. O pai relata o horror da cena: “Ele foi brutalmente espancado, recebeu um tiro de espingarda calibre 12 na cabeça e para que o corpo ficasse enterrado naquela posição, eles decapitaram o meu filho e cortaram suas pernas abaixo do joelho. Eu reconheci meu filho pela panturrilha”.
Após o enterro do filho, Tony se desentendeu com o delegado. “Eles não ajudaram a procurar meu filho e o delegado saiu dizendo que ele morreu porque era do tráfico. Meu filho era trabalhador, fazia com muito sacrifício curso técnico de guia turístico em Ilhéus. Assim como eu, ele integrava uma articulação política contra o racismo, pelo meio ambiente e pela cultura na Casa de Teatro de Bonecos de Itacaré. Esse delegado não tinha o direito de chamar meu filho de traficante”.
Algumas horas depois, ele, a atual mulher, a cunhada, seus pais, duas irmãs e uma sobrinha foram para a casa. “Todo mundo foi dormir, mas eu só consegui deitar às 23h30. Foi quando uma pessoa começou a gritar do lado de fora de casa: ‘se ficar de caozada vai tomar tiro de treizoitão’. Em seguida passou uma moto rasgando. Aí eu chamei um táxi grande (uma minivan) para tirar toda a minha família de casa”. Ele ainda ligou para a polícia e o presidente da Câmara de Vereadores pedindo socorro. Segundos antes do táxi chegar, ouviu uma mulher instruindo pessoas por onde entrar em sua residência dele. “A minha sorte foi ter chamado o carro e a polícia civil, que arrumou, a pedido do presidente da Câmara dos Vereadores, uma escolta para a gente sair da cidade. Se não fosse isso, todos nós estaríamos mortos hoje”, afirmou.
Tony recolheu toda a sua família, incluindo pais, irmãos sobrinhos, a ex-mulher com outra filha de 7 anos que estava em outra casa e fugiram de Itacaré. Foram escoltados até 30 quilômetros depois do limite do município.
No dia 29 de junho de 2013, Tony conversou com a reportagem por telefone. Ele estava com todos os parentes, no total de 11, na Rodoviária de Salvador. A Campanha Reaja, através de parceiros, arrumou abrigo para a família em uma outra cidade.
O funcionário público lembra que este não foi o único caso em Itacaré. Há um mês um adolescente negro foi assassinado. A família também teve que sair da cidade. A estimativa é de que mais de 20 jovens tenham sido mortos nos últimos meses por um grupo de extermínio que atua no município. “A maioria das vítimas são menores de 18 anos, pretos, filhos da periferia. O Estado, além de exterminar, coloca uma tarja de criminosos nos nossos filhos”, critica.
Tony diz que nos últimos 10 anos Itacaré passou por uma profunda mudança. Era uma cidade pacata, mas se transformou. “Essa propaganda desenfreada feita até no exterior de lugar paradisíaco, ideal para o turismo ecológico, atraiu a especulação imobiliária. Hoje, tem condomínios de magnatas que entram e saem de helicóptero. Ninguém nunca vê a cara deles. Itacaré não tem infraestrutura e esse crescimento desordenado, especulativo atraiu também o crime”, avalia.
Ele não sabe o que vai ser da sua vida e de toda a sua família. Tinha casa, emprego, atividade cultural e convivência com amigos. Isso ficou lá atrás. “Vivo a cada minuto. Não consigo entender tudo isso. Só queria ver esses monstros que mataram meu filho na cadeia. Eu, que comecei a trabalhar com sete anos de idade, não sei o que será da minha vida daqui para a frente. Tenho hoje um futuro incerto”.
PS.: A entrevista feita logo após a morte de Jackson, em junho de 2013. Atualmente, Tony mora em Salvador. Sua família voltou meses depois para Itacaré, mas Tony não pode retornar. É ameaçado de ser morto se pisar em Itacaré. A polícia não informa quem são os indiciados pelo crime, negou acesso ao inquérito, que já está no Fórum de Itacaré. Até o momento, ninguém foi preso pela execução.
15/5/2015Geledés Instituto da Mulher Negra


Leia a matéria completa em: CPI da Câmara dos Deputados apura o extermínio de jovens negros: Reaja! - Geledés 
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sábado, 16 de maio de 2015

Vácuo Quântico

 Òfìfo  kúántù.
Vácuo quântico.

Àkójọ́pọ̀ Itumọ̀ (Glossário).
Ìwé gbédègbéyọ̀  (Vocabulário)

Ofò, òfìfo = vácuo, vazio, o nada.
Àlàfo = espaço entre duas coisas.
Asán = vaidade, vazio, orgulho. Inútil.               
Wà lásán =  viver por viver.
Ṣófo = estar vazio.
Àlàfo = espaço entre duas coisas. 

Físíksì kùátọ̀mù, físíksì  kúántù = física quântica.

                                                           


Vácuo quântico seria o espaço no qual aparentemente não existe nada para um observador qualquer, mas que contém uma quantidade mínima de energia, campos eletromagnéticos e gravitacionais principalmente e partículas virtuais (partículas de força) interagindo entre si.

Relatório Figueiredo

 Ìròhìn Figueiredo àti ìpakúpa ti ìbílẹ̀ ní ilẹ̀ Bràsíl.
O relatório Figueiredo e o genocídio indígena no Brasil.

Àkójọ́pọ̀ Itumọ̀ (Glossário).

Ìwé gbédègbéyọ̀  (Vocabulário).

Ìròhìn, ìròìn, s. Notícias, reportagens.
Àti, conj. E. Usada entre dois nomes, mas não liga verbos.
Ìpakúpa, s. Genocídio, holocausto.
Ti ìbílẹ̀, ti ilẹ̀, ti ìlú, ti ọmọ-ìbílẹ̀, adj. Indígena, aborígene.
Ọmọ-ìbílẹ̀,  ẹ̀yà abínibí, onílẹ̀, ìbílẹ̀, s. Índio, nativo,  aborígine, indígena.

Ti, prep. De (indicando posse).
, prep. No, na, em.
Ilẹ̀, s. Terra, solo, chão.

Bràsíl, s. Brasil.

                                                              

1. O relatório Figueiredo e o genocídio indígena no Brasil


Na sexta feira passada, uma postagem revoltante foi ao ar aqui no blog Noite Sinistra, falo do texto que retratava o Holocausto ocorrido no hospital psiquiátrico Colônia, em Barbacena, Minas Gerais (clique aqui para recordar). O assunto mexeu um tanto com esse que voz escreve, principalmente pelo fato de cerca de 60 mil pessoas terem morrido dentro dos murros dessa instituição que jamais deveria ser chamada de hospital, e até hoje ninguém ter sido punido pelo acontecido. Nos dias que sucederam a publicação dessa postagem, eu procurei na internet por outros casos parecidos envolvendo massacres em terras brasileira. Abaixo eu compartilho com vocês o resultado dessa pesquisa.

Como de uma Fênix se tratasse, 45 anos depois de ser misteriosamente “destruído” em um incêndio, um relatório, que detalha atrocidades contra índios brasileiros nas décadas de 40, 50 e 60, ressurgiu do nada. Encomendado pelo Ministério do Interior em 1967, o Relatório Figueiredo causou um clamor internacional depois de revelar crimes contra a população indígena cometidas por latifundiários poderosos e pelo próprio Serviço de Proteção ao Índio.

O documento com mais de 7 mil páginas foi compilado pelo Procurador Jader de Figueiredo Correia, ali encontramos detalhes de assassinatos em massa, tortura, escravidão, abuso sexual, roubo de terras e inclusive guerra bacteriológica contra a população indígena do Brasil. Como resultado, algumas tribos foram totalmente dizimadas.

O relatório foi recentemente redescoberto no Museu do Índio e agora, se não "pegar fogo" providencialmente de novo, será considerado pela Comissão Nacional de Verdade do Brasil, que está investigando as violações de direitos humanos ocorridas entre 1947 e 1988.

Um dos muitos exemplos chocantes que podemos encontrar no relatório descreve o "massacre do paralelo 11", em que bananas de dinamite foram lançadas de um pequeno avião sobre a aldeia de índios Cinta Larga. 30 pessoas morreram, apenas dois sobreviveram para contar história.



Mas os latifundiários e madeireiros cometeram um sem número de outros crimes horrendos, por exemplo, centenas de índios foram envenenados com açúcar misturado com arsênico, muitos foram torturados em um instrumento conhecido como o "tronco" que permite ao algoz esmagar lentamente os tornozelos das vítimas.

As descobertas de Figueiredo correram o mundo e um artigo intitulado "Genocídio", em 1969, no Sunday Times, descrevia:

- "Do fogo e espada ao arsênico e balas – a civilização enviou seis milhões de índios para a extinção". Este artigo foi o responsável por um pequeno grupo de pessoas ter se mobilizado para criar a Survival International naquele mesmo ano.

Com o clamor da opinião pública, o governo instituiu um inquérito judicial para apurar os fatos, 134 funcionários foram acusados de mais de mil crimes, resultando na demissão de 38 funcionários, mas ninguém foi preso pelas atrocidades.



O vergonhoso Serviço de Proteção ao Índio deu lugar a FUNAI. No entanto, mesmo que grandes extensões de terras indígenas tenham sido demarcadas desde então, as tribos brasileiras continuam a lutar contra a invasão de suas terras por madeireiros, fazendeiros e colonos ilegais. Em palavras do diretor da Survival International, Stephen Corry:

- "O relatório Figueiredo faz uma leitura horrível, mas de alguma forma, nada mudou: quando se trata do assassinato de índios, reina a impunidade. Homens armados matam rotineiramente índios com a consciência que há pouco risco de serem julgados e punidos, nenhum dos assassinos responsáveis por atirar contra líderes Guarani e Makuxi foi preso por seus crimes. É difícil não suspeitar que o racismo e a ganância estão na raiz do fracasso do Brasil em defender as vidas de seus cidadãos indígenas".

Ao longo dos séculos a civilização humana, os chamados "povos desenvolvidos", perseguimos com vontade o genocídio dos povos indígenas, por claros interesses econômicos e ideológicos, e isto está, infelizmente, muito longe de se bastar. Em 2006 um vídeo foi publicado de forma anônima no Youtube, ele  mostrava fazendeiros, com o apoio de autoridades locais, expulsando repórteres da referida cidade. Mais tarde este vídeo foi editado e postado como o título "Amazônia, uma região de poucos" que você pode ver logo abaixo.



O vídeo mostra um grupo de repórteres do Greenpeace, da Opan e alguns jornalistas franceses, que foram até a região para entrevistar os membros de uma tribo que teve suas terras invadidas, sendo levados para a Câmara Municipal, onde uma sessão especial foi celeremente organizada. Todas as autoridades locais estavam presentes e mais de 50 fazendeiros, que insistiam em dizer que a entrada do grupo não seria permitida e que a coisa poderia ficar "perigosa" se insistissem no encontro. Em algum momento alguém chega mesmo a dizer que "Os índios são nossos", retratando bem o grupo que decidiu acabar com direitos constitucionais da cidade.

Para encurtar a história, os jornalistas temerosos (quem não ficaria?) decidiram cancelar encontro para evitar maiores conflitos, e foram para o hotel, onde os fazendeiros fizeram uma vigília durante toda a noite. De manhã cedinho, 30 caminhonetes lotadas, com faróis acesos buzinando sem parar, insultavam e ameaçavam o grupo, que teve de ser escoltado por duas viaturas policiais até o aeroporto. Ali foram advertidos a decolar imediatamente, ou o avião seria queimado.


2. COMISSÃO DA VERDADE: AO MENOS 8,3 MIL ÍNDIOS FORAM MORTOS NA DITADURA MILITAR

comissao

KÁTIA BRASIL e ELAÍZE FARIAS

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) incluiu em seu relatório final um número limitado de 10 etnias indígenas entre as 434 vítimas de graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil durante a ditadura militar entre 1964 a 1985. Segundo o relatório, no período investigado ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos. Muitos sofreram tentativas de extermínio.
No capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” consta que entre os índios mortos estão, em maior número 3.500 indígenas Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM), 1.180 índios da etnia Tapayuna (MT), 354 Yanomami (AM/RR), 192  Xetá (PR), 176 Panará (MT), 118 Parakanã (PA), 85 Xavante de Marãiwatsédé (MT), 72 Araweté (PA) e mais de 14 Arara (PA).
O relatório afirma que o número real de indígenas mortos no período pode ser maior.
Deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas”.
A investigação sobre as mortes dos índios brasileiros foi publicada no capítulo do relatório denominado “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” de responsabilidade individual da psicanalista Maria Rita Kehl. O capítulo não responsabiliza os autores dos crimes, mas recomenda a continuidade das investigações, pedidos públicos de desculpas do Estado, regularização das terras, desintrusão, recuperação ambiental das reservas e a reparação coletiva.
O capítulo reconhece “o Estado brasileiro pela ação direta ou omissão, no esbulho das terras indígenas ocupadas ilegalmente no período investigado e nas demais graves violações de direitos humanos que se operaram contra os povos indígenas articuladas em torno desse eixo comum”.
Atualmente a população brasileira é composta por 900 mil índios de 305 etnias, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai).
O pesquisador Maiká Schwade, integrante do Comitê Estadual de Direito à Verdade, Memória e Justiça do Amazonas, disse à Amazônia Real que o relatório final da CNV é, em parte, uma vitória dos movimentos sociais de modo geral e em particular dos movimentos que puseram em discussão a questão indígena, mas ele criticou a “superficialidade” do capítulo dedicado aos povos indígenas.
Maiká Schwade, que é doutorando em Geografia Agrária, defendeu a criação de uma comissão cujos trabalhos completem a investigação da CNV.
“São mais de 8.500 mortos que permanecem sem direito a identidade pessoal e política, como se fossem pessoas de segunda categoria ou nem isso. É preciso ficar claro de que não são 434 vítimas, mas 8.934 ou mais. Todos têm nome, todos morreram por uma causa. Que causa defendiam os 8.500 nomes esquecidos?”, questionou Maiká que, junto com seu pai, Egydio Schwade, realizou um vasto trabalho de pesquisa de violações nas décadas de 70 e 80 contra o povo Waimiri-Atroari, no Amazonas. Parte das apurações do Comitê serviu de base para o relatório da CNV.
Maiká Schwade destaca que é preciso uma nova investigação formada por uma comissão pluricultural.
“Isso é importante para que não seja criado um espaço segregado aos mortos e desaparecidos indígenas, mas concluir a relação das vítimas da ditadura militar no Brasil, incluindo a luta política indígena e camponesa por seus territórios invadidos. Reconhecê-los como protagonistas e vítimas são passos importantes para conhecermos o Brasil, nossa diversidade cultural e política e para a reparação das injustiças históricas, como a necessária desintrusão dos territórios invadidos por grileiros”, disse.
Veneno e pistolagem mataram índios Cinta-larga
A psicanalista Maria Rita Kehl começou a investigar as violações de direitos humanos contra os indígenas e componeses brasileiros em novembro de 2012. Ela visitou aldeias indígenas das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul do país.
Segundo a investigação, os índios da etnia Cinta Larga, que vivem entre o noroeste do Mato Grosso e sudeste de Rondônia, foram violentamente atacados. Desde a década de 50, estima-se que uma população de 5 mil Cinta Larga morreu por diversos motivos: envenenamento por alimentos misturados com arsênico; aviões que atiravam brinquedos contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola; e assassinatos em emboscadas, nas quais suas aldeias eram dinamitadas ou por pistoleiros.
“Muitas dessas violações de direitos humanos sofridas pelo povo Cinta Larga foram cometidas com a conivência do governo federal, por meio do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), e depois da Funai, o que permitiu a atuação de seringalistas, empresas de mineração, madeireiros e garimpeiros na busca de ouro, cassiterita e diamante no território dos Cinta Larga, omitindo-se a tomar providências diante dos diversos massacres que ocorreram na área indígena”, diz o relatório.
O povo Waimiri-Atroari sofreu ameaça de extinção nos anos 80 (Foto: PWA)
O povo Waimiri-Atroari sofreu ameaça de extinção nos anos 80 (Foto: PWA)

O genocídio dos 2.650 Waimiri-Atroari
Em 2013, a psicanalista Maria Rita Kehl esteve na Terra Indígena Waimiri-Atroari, entre o Amazonas e Roraima, para investigar o massacre de 1.500 a 2.000 indígenas. O relatório final da comissão concluiu que foram mortos 2.650 índios da etnia.
O capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” diz que os índios da etnia Waimiri-Atroari foram massacrados entre os anos 1960 e 1980. Neste período, a terra indígena foi afetada pela abertura, construção e pavimentação da BR-174 (que liga Manaus à Boa Vista (RR)), pela obra da hidrelétrica de Balbina, e pela atuação de mineradoras e garimpeiros interessados em explorar as jazidas que existiam no território.
A CNV relata que, conforme Censo da Funai (Fundação Nacional do Índio) em 1972, a população de Waimiri-Atroari era de 3 mil indígenas. Em 1987 eram 420 índios e em 1983 apenas 350 pessoas.
Segundo o relatório, além da atividade mineradora, as terras dos Waimiri-Atroari foram também invadidas por posseiros e fazendeiros que se instalavam às margens da BR-174 e ao sul da reserva, em Roraima.
O documento diz que um estudo da Funai apontou que, em 1981, o governo do Estado do Amazonas emitiu 338 títulos de propriedade incidentes sobre a área da reserva Waimiri-Atroari. O esquema ficou conhecido como “grilagem paulista”.
“No bojo desse processo, o governo militar apoiou ainda iniciativas de colonização do território Waimiri-Atroari, com financiamentos de atividades agropecuárias por meio dos programas Polo Amazônia e Proálcool, que beneficiaram, entre outras empresas, a Agropecuária Jayoro”, afirma o relatório da CNV.
O indigenista José Porfírio Carvalho, responsável pelo Programa Waimiri Atroari, prestou depoimento à Comissão da Verdade em 2013. Ele foi testemunha do desaparecimento dos índios waimiri-atroari durante a construção da BR-174. “Em 1987 encontrei apenas 375 índios na reserva [antes havia 1.500]”, disse ele em entrevista à Folha de S. Paulo. 
Carvalho também pediu a CNV uma investigação sobre a morte do sertanista Gilberto Pinto Figueiredo Costa, em 1974. “A versão dos militares é que encontraram o Gilberto morto pelos índios. Não vimos o corpo porque o caixão foi lacrado. Não sabemos se ele morreu flechado ou a tiro”, afirmou.
Em entrevista à agência Amazônia Real nesta quinta-feira (11), o indigenista José Porfírio Carvalho disse que, mesmo sem ter lido o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, mas pelo que tem acompanhando até momento da investigação, os casos de mortes e desaparecimentos devem continuar a serem apurados, assim como buscar os responsáveis pelos crimes.
“A apuração precisa continuar, ouvindo também o Exército, que deveria disponibilizar os arquivos com os documentos sobre as construções das estradas. Todos envolvidos no processo estão nesses documentos. Ficou faltando essa conversa com o Exército. Esta foi a minha primeira sugestão à CNV”, afirmou Porfírio.
O indigenista disse que, quando Maria Rita Kehl esteve na reserva Waimiri-Atroari ouviu os depoimentos dos índios na metade do ano passado.
“Ela conversou com os índios. Eles falaram o que tinham que falar. Eles são desconfiados, mas responderam todas as perguntas dela. Ela saiu satisfeita.  Então, acho que é necessário que seja feita uma investigação real do que aconteceu. Aquelas mortes não podem ficar impunes. Que as pessoas que a executaram sejam punidas. Os índios não estavam fazendo revolução, eles estavam cuidando da terra deles, como é até hoje”, afirmou José Porfírio Carvalho.
As mortes de 354 Yanomami
Yanomami anda em pista próxima a aldeia Surucuru nos anos anos 90 (Foto: Kátia Brasil/AR).
Yanomami anda em pista próxima a aldeia Surucuru nos anos anos 90 (Foto: Kátia Brasil/AR).
Segundo o capítulo  “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” do relatório da Comissão da Verdade, a abertura do trecho da Perimentral Norte (BR 210), entre o município de  Caracaraí e o limite entre os Estados de Roraima e Amazonas, provocou as mortes de 354 índios Yanomami e impactou diretamente cerca de 250 pessoas das aldeias do rio Ajarani e seus afluentes, além de 450 índios de malocas do rio Catrimani na década de 70.
O documento diz que a consequência da omissão da Funai (responsável pela saúde indígena na década de 70), causou diversas epidemias de alta letalidade, como sarampo, gripe e, malária, caxumba, tuberculose, além da contaminação por DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis), eclodiram entre os Yanomami, vitimando, já no primeiro ano da construção da estrada, cerca de 22% da população de quatro aldeias. No extremo leste do território Yanomami, estima-se que cerca de 80% da população tenha morrido em meados da década de 1970.
Conforme a investigação, na década seguinte, o impacto contra os Yanomami aumentou com o avanço do garimpo ilegal, um problema que persiste até os dias de hoje. “O efeito contra a população indígena foi devastador com milhares de mortos de indígenas”, diz o documento.
Trecho do depoimento de Davi Kopenawa, principal liderança Yanomami, foi reproduzido no relatório:
“Eu não sabia que o governo ia fazer estradas aqui. Autoridade não avisou antes de destruir nosso meio ambiente, antes de matar nosso povo. […] A Funai, que era para nos proteger, não nos ajudou nem avisou dos perigos. Hoje estamos reclamando. Só agora está acontecendo, em 2013, que vocês vieram aqui pedir pra gente contar a história. Quero dizer: eu não quero mais morrer outra vez”.
A reportagem procurou Davi Kopenawa nesta quinta-feira (11) para comentar sobre o relatório da CNV, mas ele disse que ainda não tinha lido e por isso não poderia dar declaração.
Mas ele reiterou o que vem denunciando há vários anos: a atividade minerária ilegal na reserva Yanomami aumenta, apesar das operações de retiradas dos garimpeiros. “A gente consegue mandar eles embora, mas eles voltam. Parece que o garimpo nunca vai sair daqui enquanto os garimpeiros tiverem apoio das autoridades, dos homens que têm dinheiro. Esses nunca vão presos”, disse.
A invasão de empresas no território Sateré-Mawé
O relatório da Comissão Nacional da Verdade cita a invasão de território que acarretou em quatro mortes de índios da etnia indígenas Sateré-Mawé, na área do baixo rio Amazonas (AM). O relatório diz que em agosto de 1981, resguardada por um contrato de risco firmado com a Petrobras, a empresa estatal francesa Elf Aquitaine invadiu o território Sateré-Mawé, efetuando um levantamento sismográfico que visava descobrir lençóis petrolíferos.
De acordo com a investigação, a empresa abriu 300 quilômetros de picadas (caminho na floresta) e clareiras para possibilitar o pouso de helicópteros na região do rio Andirá (em Barreirinha), derrubando indiscriminadamente a mata.
Em setembro de 1982, após um convênio ilegalmente firmado entre a Funai e a Petrobras, a mesma empresa voltou a invadir o território Sateré-Mawé, segundo o relatório. Dessa vez, a Braselfa, subsidiária da Elf-Aquitaine no Brasil, e a Companhia Brasileira de Geofísica (CBG), operaram nas áreas da cabeceira do Marau e no Andirá, efetuando novo levantamento sismográfico.
“Mesmo após a retirada da empresa da área, os danos permaneceram, já que a mesma deixou enterradas nas picadas inúmeras cargas de dinamite, levando à morte Maria Faustina Batista, Calvino Batista, Dacinto Miquiles e Lauro Freitas”, diz o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Participaram do grupo de trabalho “Graves violações de Direitos Humanos no campo ou contra indígenas”, além de Maria Rita Kehl, os pesquisadores Heloísa Starling e Wilkie Buzatti, além do colaborador voluntário Inimá Simões.
O líder Davi Yanomami em manifestação contra a violência aos índios em 1991, em Roraima (Foto: Kátia Brasil/AR)
O líder Davi Yanomami em manifestação contra a violência aos índios em 1991, em Roraima (Foto: Kátia Brasil/AR)
3. Houve extermínio sistemático de aldeias indígenas na ditadura.
 

 Najla Passos
Najla Passos
Brasília - Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Tiuré descreve o que testemunhou das atrocidades cometidas pela ditadura contra os índios, critica a participação dos irmãos Vilas Boas no processo, cobra autonomia para as nações indígenas e reivindica que o país dê o passo histórico necessário para o reconhecimento dos povos originários que, segundo ele, embora não conste nos registros oficiais, são tão vítimas dos militares quando estudantes, operários, militantes e camponeses.

“Pode parecer irônico falar isso, mas a repressão, as torturas, as atrocidades cometidas no meio urbano parecem maior, parecem que doeram mais do que as que foram cometidas contra os índios. Hoje se fala em 400 desparecidos nas cidades, mas nós podemos falar em cinco mil desaparecidos indígenas, porque houve extermínio sistemático de aldeias. Era uma política de estado”, afirma.

Qual a sua etnia, a sua região de origem?
Eu sou da etnia potiguara, do litoral da Paraíba. Antes, nós ocupávamos um território que ia da Paraíba ao Maranhão. Hoje em dia, estamos reduzidos somente ao norte do estado, na costa.

E como foi seu envolvimento com a ditadura militar?

Na década de 1970, eu era funcionário da Funai e, lá dentro, eu pude ver a política oficial da ditadura com relação aos índios. Impossibilitado de conviver com aquilo, abandonei o órgão e, convidado pelo líder de uma aldeia parkatejê, fui embora para a Amazônia, ajudá-los a se organizar para combater os militares. A aldeia ficava no sul do Pará, numa região já marcada pelo combate à Guerrilha do Araguaia. Era uma região de forte presença dos militares.

E a ditadura tinha, de fato, essa política de dizimar aldeias, cometer abusos e violações de direitos humanos contra os indígenas?

Isso hoje tá comprovado. Havia um coronel chamado Amauri, chefe da Funai em Belém, que usava de todos os métodos para exploração, por exemplo, do ouro e da castanha do Pará, obrigando os índios a trabalharem em sistema de escravidão. Ele usava a repressão, a violência, atirava... o grupo parkatejê já era considerado exterminado. De 1964 até 1975, a etnia perdeu mais de mil pessoas. Um processo de dizimação mesmo, porque já estava em andamento a tática da ditadura de ocupação da Amazônia, com os grandes projetos, como a transamazônica. E todo esse projeto eu vi dentro da Funai, quando ainda trabalhava lá. E era um projeto já ditado pelos americanos. Eu tive acesso a diversos documentos. Eu não sabia ler em inglês, mas compreendida os relatórios do adido militar americano no Brasil. Então, já existia um entendimento para desocupação desta área para exploração dos grandes projetos, como Carajás, Tucuruí, as grandes linhas de transmissões, a ferrovia, Serra Pelada... e os índios atrapalhavam, porque estavam em cima dessa região.

E você participou ativamente da resistência indígena?
Sim, e em consequência disso, tive que ficar dois anos escondido na mata, porque o Exercito estava atrás de mim, a Polícia Federal tinha ordem para me prender. Como eu não pertencia à aldeia, eles achavam que era eu que estava acirrando os índios. Fui considerado subversivo, agitador, não podia sair. Eles iam até de helicóptero atrás de mim. A perseguição fui muito grande, não só para mim, mas para outras lideranças também. E houve mortes, sequestros, torturas que, por ocorrerem na floresta, por não se darem no ambiente urbano, era muito mais impune, muito mais abafada. Tanto é que até hoje se procuram os guerrilheiros do Araguaia.

Na floresta, os militares usaram de todas as atrocidades possíveis, porque acharam que iam ficar totalmente cobertos, que não haveria testemunhas e que esta história nunca viria à tona, como está acontecendo hoje. E obrigavam os índios, por exemplo, a ajudá-los a eliminar os guerrilheiros. Colocavam os índios na frente, como bate-paus, para identificar os acampamentos. Como foi o caso dos suruís.

E esses índios ainda estão vivos, podem ajudar a recontar a história, a localizar ossadas?

Eu mesmo passei por um cemitério de guerrilheiros quando estava na companhia dos suruís. Nós estávamos fazendo um levantamento da área suruí para saber se havia possibilidade de extrair castanha. Já havíamos feito isso com os parkatejês, que são vizinhos, e eles também queriam uma fonte de renda própria, para não ter mais que depender da Funai. E eu fui designado para ir ajudá-los. A gente andava muito pela mata e, em uma dessas caminhadas, o grupo que estava comigo falou: “Tiuré, aqui estão enterrados os camará”. Camará são os brancos que estavam na área, os guerrilheiros do Araguaia. Devem ter alguns desses índios vivos até hoje. Eles eram mais velhos do que eu. E se eu estou com 63 anos, então devem ter 70 ou 80 anos. E no lugar dava pra ver realmente que não tinha mata, que existiam algumas covas rasas, bem na beira de um rio. É claro que, depois, os índios viram também militares voltarem lá para as tais “operações limpeza”, a retirada dos ossos. Mas os militares não eram assim tão minuciosos. Ainda podem haver alguns vestígios da presença de guerrilheiros por lá. Neste cemitério específico, eu soube que haviam sido enterrados três guerrilheiros.

Como os suruís lidavam com a violência praticada pelos militares?
Isso acabava com eles. Os suruís tiveram muitas índias estupradas. Se você for hoje na aldeia, ainda há filhos de militares do Exército, de soldados e mesmo dos de patentes altas. Os militares fizeram campos de aviação na área. Os índios não podiam sair da aldeia. Toda a liberdade que eles tinham foi reduzida. E aqueles que não participavam das ações militares eram reprimidos e até mortos. Uns tinham que fugir dali. Então, os suruís foram vítimas, foram amordaçados dentro de seu próprio território, e obrigados a caçar os guerrilheiros, com quem eles já haviam estabelecido contato e relação de amizade. Porque, entre os guerrilheiros tinham dentistas, médicos que mantinham relações amistosas com eles. Iam na aldeia, trocavam milho, enfim, tinham um bom relacionamento antes da repressão chegar na floresta. Eles conheciam mesmo os guerrilheiros, e tinham conhecimento da região como a palma da mão. E, numa das ações, eles localizaram um acampamento, foram na frente, e o Exército chegou atrás, pegou os guerrilheiros totalmente desprevenidos, sem condições de reação. Os militares executaram todos eles e ainda obrigaram os índios a participar do ritual de corte de cabeças. Quando eu cheguei na aldeia, uns dois anos depois, esse ritual ainda afetava muito os suruís. Achavam que foi uma prática tão bárbara contra outro ser humano que não conseguiam superar.

Você já pediu reparação ao estado brasileiro pelos crimes cometidos contra você?

Eu já dei entrada no pedido de anistia política. Não pelo dinheiro, mas por acreditar que meu reconhecimento como anistiado vai abrir uma porta para que outros índios, como os suruís, também consigam. Eu também já me coloquei à disposição para voltar a área, recuperar a confiança dos suruís e pedir que eles ajudem os brancos a localizar os corpos dos camarás, para que as respectivas famílias possam fazer os devidos rituais para os seus mortos. Para que possam vencer essa etapa da sua história. Estou aguardando o retorno das autoridades, mas até agora nada.

Você acha que existe algum tipo de resistência em incluir os índios como vítimas da ditadura? Como se os índios fossem os excluídos dos excluídos?

A sociedade brasileira vem de uma herança colonizadora que já soma 500 anos de exclusão indígena. Até hoje nós não temos nossa história contada por nós mesmos. Há sempre uma história oficial que se sobrepõe. Então, esse reencontro da sociedade branca com a sociedade indígena, a tal reconciliação de que tanto se fala hoje, passa por esse reconhecimento do outro, pela aceitação dos primeiros habitantes desta terra, da sua cultura, da sua herança cultural para o povo brasileiro. Infelizmente, ainda não temos esse respeito. A resistência à aceitação dos índios como vítimas da ditadura é muito grande. Pode parecer irônico falar isso, mas a repressão, as torturas, as atrocidades cometidas no meio urbano parecem maior, parecem que doeram mais do que as que foram cometidas contra os índios. Hoje se fala em 400 desparecidos nas cidades, mas nós podemos falar em cinco mil desaparecidos indígenas, porque houve extermínio sistemático de aldeias. Era política de estado. Então, nós estamos tentando levantar essa documentação para comprovar isso. Tem muita coisa que foi publicada no exterior, e também estamos buscando os documentos existentes no Brasil. E, principalmente, os relatos de pessoas que ainda estão vivas. Que estão velhos, mas estão vivos.

É a oportunidade do estado brasileiro dar um passo a frente no reconhecimento do outro, do índios brasileiro que foi afetado não só pela ditadura, mas é até hoje. É a questão da terra, do desenvolvimento impulsionado de cima para baixo. Seja a soja, o minério, a exploração dos recursos hídricos dos territórios indígenas. No Canadá, eu participei do movimento indígena canadense e é muito diferente daqui.

Você viveu no Canadá, quando?
Eu fui em 1985 porque, quando se fala em abertura política, estamos falando de uma questão teórica, porque a ditadura continuava, principalmente no meio do mato, no interior. Dura até hoje. O coronelismo ainda está lá. O poder político, os currais eleitorais, estão lá. Os assassinatos das lideranças indígenas e das lideranças rurais, as queimas de arquivo, a impunidade, tudo isso continua. E se eu saí do país em 1985, é porque já não existia mais nenhuma possibilidade para mim. Se eu não saísse, eu não estaria hoje aqui contando essa história. Foi a possibilidade de consciência, porque muitos outros índios não tiveram condições de sair. No Canadá, pedi reconhecimento como refugiado político. Foi um processo longo, que levou cinco anos de investigações. O governo canadense até veio ao Brasil investigar minha história. E eu consegui provar tudo o que dizia. Considero o meu reconhecimento como refugiado como uma condenação do Brasil. A primeira condenação por violações aos direitos de um índio. O assunto teve grande repercussão na imprensa internacional.

E como é no Canadá?
É claro que o Canadá não é um paraíso para os índios, mas eles estão bem mais avançados nessas questões de direitos humanos. Eles já participam dos royalties, por exemplo, das companhias que exploram petróleo, que utilizam os recursos hídricos, através de hidrelétricas. Eles participam dos lucros das empresas e os gerem de forma mais autônoma.

Então, você discorda dessa política brasileira de tutela dos índios?
Claramente. Hoje se fala muito em autossuficiência, se fala em autossustentabilidade, mas não se dar autonomia financeira para os índios. O que se tem hoje são migalhas, reparações financeiras que só resolvem o problema temporário. Essas indenizações não significam nada. Nós queremos é participar dos lucros dessas empresas. Nós queremos ter a nossa universidade. Eu estudei numa universidade indígena canadense financiada com os recursos dos indígenas, com professores indígenas. Nós queremos universidades nas nossas áreas, queremos hospitais para atendimento 24 horas nos nossos territórios. Nós temos um problema grave em educação e saúde que não se resolve com indenizações pontuais. Na minha área potiguara, ainda há uma usina funcionando que foi instalada pela ditadura. A maior reserva de titânio do Brasil tá lá na nossa área. E uma mineradora explora. E tem uma aldeia há 4 Km dessa exploração em que as pessoas estão morrendo à míngua. É uma situação insustentável. Tem que haver uma mudança. Temos que discutir a participação nos lucros dessas empresas.

Assim como os estados estão brigando pelos royalties, nós também, os primeiros povos, queremos royalties, porque estamos sendo explorados em nosso território. Na época da ditadura, o Exército entrou na nossa área [Potiguara] e garantiu terras para grandes latifundiários e grandes companhias internacionais. Nós perdemos um terço do nosso território durante a ditadura. Eles deram até um atestado de óbito para nosso povo, dizendo que não existiam mais potiguaras na área. E com esta certidão negativa, conseguiram financiamento do Banco Mundial. A Funai é responsável por tudo que aconteceu com o povo indígena.

Na sua experiência na Funai, você deve ter convivido com os irmãos Villas Boas. Qual foi o papel deles neste contexto todo?
Eu tenho uma crítica muito grande aos Villas Boas. Eles são considerados os humanistas, não sei nem como ainda não foram laureados pelo Nobel, porque conseguiram uma publicidade incrível. Mas eles participaram desse processo de aprisionamento das nações indígenas, como se quisessem criar um zoológico. O Xingu é isso. Na época da ditadura, os interesses de deslocar as aldeias para desenvolvimento da economia levou os militares a usar os Villas Boas para criar aquele Parque do Xingu, que não é nada mais do que você colocar diferentes aldeias, muitas delas que viviam em guerra culturais seculares, todas juntas. Línguas diferentes, culturas diferentes, tudo no mesmo território. E os Villas Boas participaram disso e acabaram criando um cenário de propaganda do regime.

O Xingu virou o cartão postal da política indigenista. Aquela coisa mais supérflua, mais teatral, para os militares promoverem festas e lotarem aviões de gente par aos verem sendo fotografados com os índios. Para mim, os Villas Boas foram complacentes com a ditadura. Olha, eu entrei na Funai com a visão de que a política dos militares para os índios era aquela do Marechal Rondon: “morrer se for preciso, mas matar nunca”. Mas, na verdade, a cartilha deles era o contrário, era a cartilha americana: “índio bom é índio morto”. Então, temos que desmistificar essas histórias impostas pelo regime e contar a nossa história. É isso o que esperamos da Comissão Nacional da Verdade, da Comissão da Anistia.

Hoje, você milita em alguma organização indígena?
Não. Eu estou ligado a minha aldeia, uma aldeia pequena. Não sou de partido nenhum, não pertenço a nenhuma ONG. A minha intenção é criar uma resistência indígena nacional. É com este intuito que voltei ao Brasil. O movimento indígena, na minha época, tentava se organizar. Hoje, há muitas lideranças cooptadas, com cargos no governo, na Funai, com acordos desvantajosos com a iniciativa privada. Por isso, minha intenção é ajudar na conscientização pra gente fazer um levante revolucionário, para retomarmos nossas terras.


4. Relatório aponta que mais de 2 mil índios Waimiri-Atroari desapareceram durante ditadura

Os dados serão acrescentados àqueles já existentes no inquérito civil público instaurado, em setembro deste ano, pelo procurador da República Julio José Araujo Junior, para apurar a responsabilidade do Estado Brasileiro pelas violações dos direitos do povo indígena Waimiri-Atroari.

    Segundo denúncia de Eydio Schwade, aproximadamente 2 mil waimiris-atroaris desapareceram durante a ditadura
    Segundo denúncia de Eydio Schwade, aproximadamente 2 mil waimiris-atroaris desapareceram durante a ditadura (Euzivaldo Queiroz - 14/nov/2011)
    O Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM) recebeu, na manhã desta quarta-feira (17), o 1º Relatório do Comitê da Verdade, Memória e Justiça do Amazonas, que relata “o genocídio do povo Waimiri-Atroari”. O relatório foi entregue durante solenidade realizada no auditório da OAB/AM.
    Os dados serão acrescentados àqueles já existentes no inquérito civil público instaurado, em setembro deste ano, pelo procurador da República Julio José Araujo Junior, para apurar a responsabilidade do Estado Brasileiro pelas violações dos direitos do povo indígena Waimiri-Atroari durante a construção da Rodovia BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR). 

    Ele destacou, ainda, que o MPF vem acompanhando a atuação da Comissão da Verdade, em todo o país, e vem adotando medidas, nos âmbitos cível e criminal, para apurar essas violações contra os direitos humanos durante o período da ditadura militar. “O relatório soma ao trazer documentos que possam instruir esse inquérito e que contribuam para elucidar o que ocorreu nesse período”, afirmou o procurador.

    Pioneirismo
    O relatório, que conta com mais de cem documentos anexados e mais de 200 documentos referenciados, aponta o desaparecimento de mais de dois mil integrantes do povo indígena Waimiri-Atroari e estabelece a relação da construção da BR-174 com o massacre dos índios.

    Durante o evento, o assessor da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República Gilney Viana afirmou que o relatório entregue pelo comitê é simbólico e paradigmático. “É o primeiro relatório de um comitê que a Comissão Nacional da Verdade recebe. Geralmente, os comitês entregam documentos, mas não um relatório robusto. Além disso, é o primeiro relato
    focado na questão indígena”, disse Viana.

    O assessor destacou também a parceria com o MPF. “A presença do Ministério Público é fundamental porque a Comissão da Verdade não tem competência para provocar o Judiciário, mas não é só por isso, é mais que isso, é a forma pela qual o Ministério Público dialoga com a sociedade e, particularmente, sobre um tema que uma parte do Estado se nega a dialogar”, afirmou.

    Também presente ao evento, procurador regional dos Direitos do Cidadão, Felipe de Barros Carvalho Pinto, reafirmou o compromisso do MPF em acompanhar a atuação da Comissão. “Esperamos que, a partir do diálogo da Comissão Nacional da Verdade com o MPF, já iniciado, possam surgir ações concretas no sentido de esclarecer a sociedade, responsabilizar aqueles que devam ser responsabilizados e ajudar a reconstruir a verdade da história do país”, declarou o procurador.