Ìpakúpa ní'lẹ̀ Bràsíl.
Holocausto no Brasil
Texto 1: Brasil, um país genocida
Enviado por Lilian Milena, qua, 13/08/2014 - 13:44
Autor: Lilian Milena
“Recebi um telefonema de um policial da família às oito horas da manhã pedindo para avisar para as pessoas de bem, e não para lixo, que quem estivesse no meio da rua era inimigo da polícia. Então eu saí dando esse aviso para as outras famílias, só não imaginava que isso sobrecairia sobre mim. Quando foi onze e trinta da noite meu filho foi assassinado”.
O depoimento é de Débora Maria da Silva, fundadora e coordenadora do Mães de Maio, movimento formado por mulheres que perderam seus filhos durante o toque de recolher imposto pela polícia do Estado de São Paulo, em maio de 2006, quando ocorreram ataques aos agentes e equipamentos públicos provocados pelo PCC (Primeiro Comando da Capital), grupo do crime organizado nascido nas penitenciarias. Em apenas uma semana cerca de 600 pessoas foram assassinadas, todas com perfis muito semelhantes: jovens, negros ou pardos, moradoras de bairros da periferia.
No dia em que recebeu a ligação do policial, seu filho decidiu ir ao trabalho, mesmo tendo atestado médico por ter operado a boca. “Ele passou em casa, então avisei sobre o que o policial falou, mas ele respondeu ‘ó mãe, eu não devo nada para a polícia’. Ainda repetiu isso duas vezes e continuou: ‘só vim buscar a amoxicilina porque está tudo fechado”.
De noite, enquanto abastecia sua moto em um posto de gasolina, duas viaturas da polícia encostaram e perguntaram o que estava fazendo na rua. Sua resposta - “eu não devo nada para vocês” - foi também sua sentença de morte.
“Quando o meu filho falou isso eles começaram a espancá-lo. Deram chutes, murros no peito, tapa no rosto e disseram: “Você é um trabalhador até morrer. Morreu, você é um bandido”. Todas as informações que Débora conseguiu reunir para investigar as causas do assassinato de seu filho foram conseguidas por conta própria, a partir de depoimentos das pessoas que viram a ação policial. Seu filho foi morto pelas costas, com cinco tiros. Ela conta que a polícia fez apenas uma revista física e não olhou os documentos de quem nunca teve passagem em uma delegacia.
Ela descobriu também indícios fortes de que os mesmos policiais que ela acredita terem realizado a execução do seu filho, o socorreram e protocolaram o boletim de ocorrência. Não ouve exame balístico por falta de balas na cena do crime. Apenas uma ficou alojada na coluna cervical do rapaz e há dois anos Débora conseguiu que fizessem a exumação do cadáver para retirarem o projétil.
“O médico legista me chamou no Ministério Público Central e disse que em princípio era um projétil de calibre 38, que na época os policiais militares usavam. Achava que essa era uma esperança de investigação por parte do Ministério Público, mas acabou não dando em nada. O projétil está arrolando (sic) no inquérito do meu menino, em um saco plástico, porque não tem a arma para fazer exame balístico”, e assim o caso foi arquivado. Débora participou do programa Brasilianas.org (TV Brasil) sobre a responsabilidade direta e por omissão do Estado pelo elevado número de mortes registrado todos os anos.
O debate também contou com a participação do jurista Luiz Flávio Gomes, defensor da proposta de que o Brasil deve ser enquadrado como um Estado genocida. “Quando você tem um conjunto de homicídios dentro de uma estrutura de poder, que neste caso é o Estado, claro que é um genocídio. Pois o que é um genocídio? Significa tentar eliminar uma raça, uma cor, uma etnia, uma religião ou matar gente de determinada categoria socioeconômica”, completa.
O Brasil é um país violento. Dados publicados do último Mapa da Violência, neste ano, apontam que de 1980 até 2012 o volume de assassinatos cresceu 148,5%. De 2003 até 2012, 556 mil homicídios aconteceram no país, somente em 2012 mais de 56 mil pessoas foram mortas por outras, contabilizando algo em torno de153 assassinatos por dia, números bem superiores a qualquer outro registrado em zonas de guerra pelo mundo. A título de comparação, em quase um mês de conflito entre Israel e Palestina, cerca de 2 mil pessoas foram mortas na Faixa de Gaza.
“Muitos dos homicídios não tem nada a ver com o Estado. É marido que mata mulher, vizinho que mata vizinho. Mas boa parcela é de responsabilidade direta do Estado”, explica. Entre 2005 e 2009, a polícia militar de São Paulo matou mais do que todos os agentes de segurança dos Estados Unidos. Segundo relatório divulgado pela Ouvidoria da Polícia de São Paulo em 2011, 2.045 pessoas foram mortas pela PM no período. Já um relatório do FBI, publicado no mesmo ano, apontou 1.915 mortes nos Estados Unidos em confronto com as forças policiais, entre 2005 e 2009.
Flávio Gomes ressalta que é importante se estabelecer que os policiais militares também são vítimas do Estado. “Esse genocídio não vitimiza apenas os jovens da periferia, como também muitos jovens policiais que, destreinados, são mandados para as ruas sem nenhuma noção do que é direitos humanos”, analisa. Ele critica declarações públicas de representantes de governo já ditas à imprensa como “quem não reagiu está vivo”, “bandido bom é bandido morto” e lembrou que o Estado do Rio de Janeiro tem registrado na sua história recente a premiação de policiais que mais realizaram assassinatos.
O jurista compreende que o homicídio no Brasil é um problema sociológico, além de um problema jurídico. “Isso [o assassinato em massa de pessoas com o mesmo perfil], é da história do Brasil, da cúpula do poder que computa que muitos são extermináveis, sem nenhum valor”, lembrando que o direito romano já trazia o termo homo sacer para designar a figura de uma pessoa excluída de todos os direitos civis, que pode ser morta sem a impunidade do seu algoz. No caso brasileiro, o homo sacer são jovens, negros e moradores da periferia.
Ainda, segundo o Mapa da Violência, ocorreu uma queda anual do número de pessoas brancas assassinadas de 19.846 em 2002 para 14.928 em 2012, o que representa uma diminuição de 24,8%. Por outro lado, entre os negros as vítimas aumentaram de 29.656 para 41.127 durante esses mesmos dez anos, um crescimento de 38,7%.
“É inaceitável que paguemos a bala que mata os nossos filhos. É como se fosse voltando no tempo dos senhores fidalgos (sic). Temos o capitão do mato que é o policial que só mudou de corpo, que tem a lei e o dinheiro ao seu favor”, diz Débora.
O genocídio praticado diariamente no país tem todas as características de um crime contra a humanidade, pondera Flávio Gomes. A Comissão Internacional de Direitos Humanos, que já julgou Bolívia e Peru por casos semelhantes, é a instituição que poderia culpar publicamente o Brasil e trazer justiça aos familiares de vítimas executadas com a anuência do Estado, que já foi condenado, em 2010, pela morte de 62 guerrilheiros no conflito do Araguaia, durante a Ditadura Militar.
Programa Brasilianas.org - O genocídio brasileiro
Texto 2: A hora da reação nacional contra um Estado genocida
DOM, 13/07/2014 - 14:06
ATUALIZADO EM 13/07/2014 - 17:17
As conclusões do jurista Luiz Flávio Gomes são da maior relevância. Ao defender a tese de que o Estado brasileiro é genocida, Gomes abre uma discussão que poderá ser a saída para uma escalada sem paralelo da violência institucional e popular.
É hora do Judiciário se firmar como um poder civilizatório e montar uma frente contra os desmandos..
Não dá mais para procrastinar. Em todos os estados há uma escalada de violência inédita contra pobres, negros, índios, um estímulo às execuções por parte da polícia e ao linchamento por parte da população..
E ninguém é responsabilizado. Quando ocorre alguma punição é na ponta da cadeia do genocídio: o soldado que deu o tiro final. Os maiores responsáveis – autoridades que estimulam a violência ou se eximem de combate-la – permanecem em posição cômoda, graças à cumplicidade institucional brasileira.
Esta semana pela primeira vez houve uma condenação em São Paulo pelos crimes de maio - o massacre de mais de 600 jovens de periferia, em represália pelos ataques do PCC.
Foi o mais vergonhoso episódio da história da cidade, um massacre coordenado que só foi interrompido quando um grupo de procuradores federais e médicos do Conselho Regional de Medicina correram ao Instituto Médico Legal (IML) para garantir o laudo – prova inicial para os futuros inquéritos. Só assim cessou a matança.
Foram mais de 600 assassinados, na maioria jovens de periferia, maioria negros, óbvio, grande parte sequer com antecedentes criminais.
Condenou-se UM soldado à prisão. E os chefes? E a Secretaria se Segurança, que permitiu que se desligasse a comunicação dos rádios da polícia para não deixar rastros? E o Ministério Público Estadual que não deu seguimento a um inquérito sequer? No caso dos índios, como explicar a ausência criminosa de mediação por parte do Ministério da Justiça? Como tolerar as mortes frequentes nas UPPs cariocas? Não se trata de fenômenos isolados, mas de uma escalada de violência à altura dos piores períodos ditatoriais.
É hora da Justiça se manifestar e do Ministério Público começar a agir:
1. Quando o Ministro da Justiça abandona a mediação de conflitos indígenas, em áreas conflagradas, tem que ser responsabilizado por omissão dolosa pelos crimes que ocorrerem devido à sua ausência. E se nada for feito, a responsabilização tem que chegar ao chefe do Ministro: a presidente.
2. Quando o Secretário de Segurança de São Paulo endossa violência policial, tem que ser responsabilizado por incitação à violência. Assim como o governador do Estado, quando diz que só morreram os que resistiram. Quando o Secretário muda a cúpula da PM tem que se saber a razão: se a substituição implicar em mais violência, que seja responsabilizado.
3. Quando um comentarista em veículo de larga difusão estimula o linchamento, tem que ser responsabilizado.
4. Quando aumenta o número de mortes pela PM, os comandantes da força, respectivo Secretário de Segurança e governador têm que ser responsabilizados.
E todas essas denúncias precisam ser levadas às cortes internacionais para uma chacoalhada que permita a este país recuperar um mínimo do respeito aos direitos individuais e coletivos.
O Estado brasileiro é genocida?
02/07/2014 por Luiz Flávio Gomes
“Fingi de morto, conta jovem que sobreviveu a ataque de PMs no Rio; M., 15 anos, levou tiros de fuzil e pistola e foi socorrido numa igreja; outro garoto, de 14 anos, não resistiu e morreu; dois cabos da PM foram presos; fatos ocorreram em 11/6/14, num matagal do morro do Sumaré (RJ), para onde os menores foram levados; os meninos foram baleados 4 vezes; os comerciantes da região disseram que o local é ponto de desova (ocultação de cadáveres produzidos pela PM); Aline dos Santos, tia do garoto morto, já perdera o marido e um tio assassinados; o pai reconheceu o garoto abandonado no matagal e disse: “se tivesse feito algo errado, deveria ser levado para a delegacia, não assassinado”; M. disse que estava tranquilo nas mãos dos policiais, até chegar ao morro do Sumaré; “ali vimos que iam fazer maldade” (Folha 21/6/14: C4). No Brasil a polícia executa sumariamente os jovens negros, pardos ou brancos pobres (sobretudo da periferia) e isso é feito cotidianamente. Também diariamente um ou mais de um policial é assassinado. Faz parte do pacote genocida a morte de policiais. Como não são fatos isolados, sim, corriqueiros, frequentes, parece não haver nenhuma dúvida de que as execuções sumárias dos agentes do Estado fazem parte de uma política pública genocida.
A tese que estamos desenvolvendo é esta: o Estado brasileiro é genocida e faz isso por ação e omissão. Um dia tem que ser responsabilizado por esse genocídio massivo nos tribunais internacionais. Espera-se pela mobilização das entidades de defesa dos direitos humanos de todos (das vítimas dos policiais bem como dos policiais-vítimas). Basta que se compreenda o verdadeiro conceito de genocídio (que é um crime contra a humanidade e imprescritível).
Morrison, com seu livro Criminología, civilización y nuevo orden mundial (Barcelona: Anthropos, 2012), não apenas reivindica uma nova criminologia, de natureza global, como sustenta a necessidade de um novo conceito de genocídio (tendo estudado no livro incontáveis massacres humanos, desde 1885). De minha parte acredito que o melhor caminho epistemológico seria reconhecer como genocídio todos os massacres massivos contra qualquer agrupamento humano por razões de raça (assassinatos massivos dos afrodescendentes, por exemplo), cor (massacre dos jovens negros e pardos pobres), etnia (massacre dos índios), religião, sexo (massacre dos homossexuais), origem, socioeconômicas(massacre dos pobres), machistas (massacre das mulheres em razão do gênero) etc. Zaffaroni (na apresentação do livro citado, p. XV e ss.) sublinha que deveríamos (pelo menos) prestar mais atenção e tentar estancar os massacres (genocidas) provocados pelo Estado.
Particular interesse científico apresenta, nesse novo contexto epistemológico, o genocídio no Estado brasileiro. Não somente por razões históricas (ele se formou dessa maneira, massacrando massivamente os índios e os negros). Entendido de forma ampla, o novo conceito de genocídio permite o seu reconhecimento no seio da política pública de segurança instituída no nosso país (desde 1822). Trucida-se diariamente não apenas os jovens negros, pardos e brancos pobres (das periferias), como também os próprios policiais (em 2012, somente no Estado de São Paulo, mais de 100 deles foram mortos em razão das suas atividades). Anualmente, milhares são as vítimas dos policiais e centenas são os policiais-vítimas.
São incontáveis as implicações jurídicas desse novo enfoque, visto que o crime de genocídio, repita-se, é crime contra a humanidade e imprescritível. Mais ainda: se se trata de crime contra a humanidade, o Brasil poderá ser demandado nas Cortes Internacionais por esses crimes jushumanitários. Ademais: se o crime é imprescritível, também o seria a reparação desses danos (consoante a doutrina de Zaffaroni, na apresentação do livro acima citado, p. XV).
Uma das maiores novidades criminológicas deste novo século consiste na solidificação da tentativa de se ampliar (criminologicamente) o conceito de genocídio, classicamente tido como um ataque a um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, com o escopo primordial de dizimá-lo. Dessa tarefa se encarregou o neozelandês (Wayne Morrison), professor da Escola de Direito Queen Mary (Universidade de Londres), que já desponta como um dos criminólogos mais importantes do século XXI, em razão da sua criteriosa e histórica pesquisa sobre os incontáveis genocídios (milhões de cadáveres) praticados desde o final do século XIX. Um detalhe sumamente relevante: de todos esses horrendos genocídios não cuidou a criminologia desenvolvida nos países centrais (Europa, EUA etc.). Que faziam a criminologia e o direito penal durante todos esses massacres? Nenhuma linha sobre eles. É hora de a criminologia (burocrática) deixar de cuidar exclusivamente dos homicídios comuns e roubos (Zaffaroni). O mundo dos genocídios massivos deve gozar de absoluta prioridade científica e política frente ao ladrão de galinha!
Do já famoso livro de Morrison não constam detalhes do genocídio brasileiro, mas ele existe. Mais de um milhão de pessoas foram assassinadas no Brasil, de 1980 a 2012.
Uma muito relevante parcela dessas mortes tem como responsável direto o Estado brasileiro, que protagoniza (por meio dos seus agentes) uma das políticas racistas e genocidas mais cruéis do planeta. Por exemplo: em julho de 1993 alguns PMs mataram oito crianças que dormiam em marquises próximas da Igreja da Candelária, no RJ. Fatos como esse se tornaram diários, o que comprova que é uma política de Estado, que atua para matar e, normalmente, se omite no apurar e punir os executores sumários.